(Leituras de fim-de-semana. É longo, mas talvez valha a pena para reflectir e debater)
E se trocássemos
umas ideias sobre as reformas da função pública?
Por JOSÉ MANUEL
FERNANDES
“A
diferença entre as reformas de um pensionista do regime geral e um da função
pública, com idênticos descontos, é de 10% a 30%. É isto justo e
constitucional?
Num país não muito distante os deputados das
várias bancadas acabam de chegar a acordo para reverem o sistema de pensões dos
seus funcionários públicos. Esse acordo diminui os benefícios futuros dos
actuais funcionários mas também corta as pensões que já estão a pagamento. Com tal reforma espera-se repor algum
equilíbrio num sistema altamente desequilibrado e restaurar a confiança dos
mercados, que têm vindo a exigir juros muito elevados para financiar a despesa
pública. Os sindicatos já anunciaram que vão contestar o acordo nos tribunais,
pois acham que ele viola a Constituição.
Num outro país ali mesmo ao lado a situação
degradou-se mais e as autoridades foram obrigadas a declarar bancarrota. Nesse
país, onde o desemprego atinge os 16% e a população está a emigrar a ritmos
antes desconhecidos, a bancarrota implicará uma reestruturação da dívida que
passará pela aplicação de cortes nos fundos de pensões e nos “direitos
adquiridos” de funcionários e pensionistas. A declaração de bancarrota foi
desafiada nos tribunais, mas estes reconheceram que não havia alternativa.
Estas duas histórias são verdadeiras e são
desta semana. A primeira passou-se no Illinois, o estado de Obama que é governado
por uma maioria democrata. A segunda é de Detroit, no vizinho estado do
Michigan, uma cidade que também é governada pelo partido do Presidente do
Estados Unidos. Cito-as aqui apenas por uma razão: para mostrar que há mais
sítios no mundo com problemas parecidos com os nossos, que governos tidos como
de esquerda também tomam medidas que afectam pensões em pagamento, que não é só
por cá que os sindicatos dizem que tudo é inconstitucional e, finalmente, que
mesmo num país onde há políticas crescimentistas, à là Paul Krugman e sob a
batuta do intocável Obama, a realidade não deixa de impor medidas muito
comparáveis a algumas que estão a ser tomadas em Portugal. Faço-o também num
esforço para trazer argumentos a uma discussão que, entre nós, é dominada pela
gritaria panfletária.
Eu
sei que corro um risco. O simples facto de afirmar que, se calhar, é mesmo
necessário alterar algumas regras do regime de pensões expõe-me ao opróbrio
dirigido a quem quer que não vilipendie a troika e o Governo. Corro o risco de
me acusarem de ser um “comentador ao serviço do poder”, o que só acontecerá
“para ganhar dinheiro”, pois ninguém poderá, no seu perfeito juízo, deixar de
pensar que os nossos governantes não passam de “lacaios que passaram do anexo
para o palácio”. Ou então que são “um fungo que não se consegue limpar”, gente
que está a destruir a nossa sociedade “justa, igualitária e livre” apenas “para
favorecer um grupo de privilegiados”. Mereceria pois que me atirassem, pelo
menos, “ovos podres” ou “tomates maduros”, “para não referir o arremesso de
objectos mais contundentes”.
Todas as frases que cito entre aspas foram
escritas nos últimos dias por pessoas respeitáveis em páginas de jornais de
referência e são apenas uma minúscula amostra do estado das coisas. Neste ambiente
de bazucadas irrestritas é muito difícil formular um argumento ou sequer apelar
a um mínimo de racionalidade. Mesmo assim vou regressar, como prometido, ao
tema das pensões. Para defender um argumento simples: mesmo que não vivêssemos
uma crise da dívida era necessário, por uma questão de justiça, rever as
pensões da administração pública.
O primeiro ponto do meu argumento é fácil de
demonstrar: as pensões que recebem os aposentados da função pública são
desproporcionadamente elevadas quando comparadas com as pensões que recebem os
reformados do regime geral.
Com efeito os reformados da Caixa Geral de
Aposentações beneficiaram, até há dois ou três anos, de um regime que lhes
permitia passar à reforma muito mais cedo e com menos anos de descontos. Não é
possível expor no espaço deste artigo todos os diferentes regimes de
aposentação, mas até 2005 podiam reformar-se aos 60 anos com 36 anos de
descontos, contra os 65 anos e 40 de descontos que eram a regra do sector
privado. A esmagadora maioria dos actuais reformados da CGA beneficiou pois de
condições excepcionais, razão pela qual nos últimos dez anos a idade média da
entrada na reforma na CGA tenha sempre estado entre os 58 e os 60 anos. A
consequência desse benefício relativo é que o tempo médio de pagamento de uma
pensão a um aposentado da administração pública é de 18,1 anos – o que
significa que aceitar como intocável o seu benefício relativo é aceitar que o
seu custo acrescido terá de ser pago pelos nossos impostos até para lá de 2030.
A fórmula de cálculo da pensão também era
mais favorável para os funcionários públicos. No mínimo, para uma carreira com
idênticos níveis salariais, a reforma de um funcionário público é hoje 10%
superior à de um aposentado vindo do sector privado, mas é fácil chegar a
diferenças de 30% mesmo sem recorrer aos exemplos extremos de funcionários que
eram promovidos nas semanas anteriores à sua aposentação para assim
beneficiarem de reformas mais generosas. Mais: até há bem pouco tempo a regra
na administração pública era receber-se mais, em termos líquidos, passando à
reforma do que continuando no activo.
O segundo ponto do meu argumento é que esta
diferença viola duplamente a equidade. Por um lado, o Estado paga de forma
gritantemente diferente a quem trabalhou e descontou toda a vida, segregando em
função de se ter sido ou não funcionário público. Por outro lado, para manter o
actual regime, esse mesmo Estado sobrecarrega com impostos e taxas as gerações
que ainda estão no mercado de trabalho, gerações essas que nunca beneficiarão
das mesmas condições.
Os benefícios que sucessivos governos foram
concedendo aos reformados da CGA criaram um enorme défice na Caixa Geral de
Aposentações. Em 2013 a
diferença entre as suas receitas e o que paga em pensões será de 4,36 mil
milhões de euros (só para podermos comparar: o “enorme aumento de impostos”
representou 2,6 mil milhões de euros). Mesmo que os funcionários admitidos
depois de 2006 continuassem a descontar para a CGA (e não para o regime geral,
como hoje sucede), esse défice só diminuiria em 400 milhões.
Se Portugal não vivesse uma crise de dívida,
manter estes níveis de desigualdade e de sobrecarga sobre os contribuintes
seria iníquo, pelo que reformas como a de 2005 deveriam ter enfrentado este
problema. Mas vivendo nós a crise que vivemos, diminuir a diferença existente
entre a pensão de um funcionário público e a pensão de um reformado do regime
geral parece-me corresponder tão-somente a pedir a quem recebe mais que
contribua também mais para o reequilíbrio das contas públicas.
Na verdade, sem se conseguir reduzir o
défice gerado por este sistema, e que é pago com impostos, será mais difícil
fazer descer esses mesmos impostos, e sem descida da carga fiscal nunca teremos
um crescimento económico que se veja. Ora sem um mínimo de crescimento
económico, o sistema ainda será mais insustentável.
Há quem argumente que só se deve promover
esta convergência dos sistemas de pensões alterando as fórmulas das pensões
futuras e não tocando nas pensões que já estão a ser pagas – e que serão pagas
por muitos e bons anos. Fazê-lo seria, argumentam, alterar o contrato feito com
os reformados. Esse argumento subvaloriza as sucessivas alterações de contrato
que têm sido impostas aos reformados do futuro, que cada vez descontam mais para
no futuro receberem menos. Também aqui há um equilíbrio a repor. Porque senão o
“contrato social”, em vez de ser um contrato partilhado com as gerações mais
novas, representará apenas o egoísmo das gerações que beneficiaram da ilusão de
uma riqueza que não existia.”
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