domingo, 22 de janeiro de 2012

Memórias do dia 22 de Janeiro de 1974 – Um dia que nunca esqueço

Preâmbulo

Com este Capítulo chega ao fim o relato que aqui venho fazendo, em dias do aniversário, da experiência que vivi no dia 22 de Janeiro de 1974, quando participei num feito que considero histórico, que é o de ter participado numa “greve” durante o regime do Estado Novo, algo que era considerado crime.

Tenhamos em conta que esse regime já agonizava, e que o seu fim se aproximava, a passos largos, no próximo 25 de Abril, mas mesmo assim o risco era grande! Nessa época, convém relembrar que, participar numa aventura destas punha em risco a própria vida. Mas, o que representava essa mesma vida para um jovem de 16 anos, que via aproximar-se, a sua ida para África, para matar ou morrer, numa guerra absurda e por uma causa bem menos justa.

Para uma actualização integral, caso já tenha caído no vosso esquecimento, recomendo que recueis até há um ano atrás, neste espaço, e lêem o II Capítulo; ou mesmo dois anos e, aqui, encontrarão o inicio desta pequena aventura. Para aqueles que não tenham paciência para tanto, ficam aqui, os últimos parágrafos do II Capítulo, para refrescar a memória, daqueles que ainda a possuem:

“... Quando chegou a minha vez, senti-me a enfrentar um pelotão de fuzilamento. No entanto a dúvida, do monólogo com a entidade patronal, já se havia esfumado, pois já ouvira bem claro, o que se passara com aqueles que mais próximos estavam de mim, e assim, foi sem qualquer surpresa, que ouvi da boca do senhor Engenheiro Neves, a pergunta que repetia pela quinquagésima vez:

- O senhor quer ou não trabalhar?

“Ainda passou pela minha cabeça argumentar que Sim, que queria! Que gostava muito, e precisava daquele trabalho, como do pão para a boca…! Mas, que o senhor engenheiro fosse criterioso, pois bem sabia que o custo da vida estava pelas horas da morte, que a renda da casa tinha aumentado, a electricidade em casa já andava a ser substituída por velas; o comboio já custava seis escudos do Cacém para Lisboa, até, pela “bica”, já queriam vinte e cinco tostões; ir ao cinema? Só no “piolho”…; saiba, o senhor engenheiro, que a malta mata-se aqui a trabalhar, a dar o litro dez horas por dia; eu, uma criança, pela manhã até já cuspo ferrugem deste maldito óxido de ferro, e à noite, só oiço “grilos” nas orelhas; os maganos daqueles sarracenos não param de aumentar o preço do petróleo e, como o senhor sabe, quando aumenta o crude, aumenta tudo, O senhor bem sabe, que fomos nós, com o nosso trabalho, que fizemos esta empresa, não se esqueça, que ainda há três anos, não passava de uma oficina num “vão de escada”!
- E já agora, ò senhor engenheiro, o que era isso para si de, apenas mais dez escudos por dia a cada um de nós? Etc., etc.….”

Mas não. Baixei a cabeça, por ser a primeira vez que estava tão de perto com tamanha eminência, não prenunciei uma só palavra, e lá segui, no formigueiro, para a porta de saída. Evitando assim, ao Sr. Neves da Silva, a palavra por si mais repetida naquele dia: RUA!”


Capítulo III e Epílogo

Como já havíamos revelado no Capítulo anterior, esta «média empresa» não passava, há três anos atrás, de uma pequena oficina familiar de vão de escada, com meia dúzia de operários que, praticamente, executavam obra miúda, tal como portas e portões ou janelas em ferro, para protecção das propriedades privadas das redondezas. Havia sido concebida e criada “a meias” entre dois sócios, em que um, o actual patrão, à boa maneira portuguesa se havia desenvencilhado do segundo, assim que a coisa começou a prosperar e dar rendimentos.

As instalações de produção eram constituídas por dois grandes pavilhões contíguos que embora iguais no seu formato, parecendo irmãos, poder-se-ia antes dizer que um havia parido o outro, sendo assim um o principal e o outro o secundário. Ali eram construídas toda a gama de maquinaria para a construção civil, desde gruas a betoneiras, até silos e cofragens; ali trabalhavam mais de duzentos operários entre traçadores, cortadores, torneiros, maçariqueiros, ferramenteiros, desempenadores, serralheiros civis e mecânicos, soldadores, serventes para toda a obra, montadores, electricistas, fresadores, aprendizes, praticantes de tudo e de nada, controladores de produção, e, qualidade, chefes de secção, e, gerais, etc., etc. Digamos que, de grosso modo, ferro era connosco.

Apesar desta vocação institucional pelo metal, ainda me lembro, como se fosse hoje, do episódio do “martelo de desempenar borracha”, quando estava no meu segundo dia de tirocínio da arte do malhar ferro, ter chegado à minha beira, um daqueles já experimentados “mestres ratinhos” e ter-me ordenado: «- Ò chaval, vai além à Ferramentaria levantar um martelo de desempenar borracha! E vai num pé e vem no outro, senão tens que experimentar a densidade da verga de aço nessas nalgas, que tenho aqui guardada para os molengões alentejanos...».

Tendo eu apenas catorze anitos, pensava já não ser dos mais tolos, e um “martelo de desempenar borracha?”, não lembrava ao diabo! Mas, quem se atrevia a desobedecer nessa época a um “mestre”? E, com ar desconfiado, mas sem pestanejar, lá fui em demanda da peculiar ferramenta de endireitar a borracha. Claro que, ao meu pedido, o ferramenteiro me cravou um volumoso “embrulho” com mais de vinte quilos, que lá tinha sempre pronto a entregar aos incultos e novatos na arte de malhar o ferro.

Sobre a data desta pequena praxe, já haviam passado mais de dois anos, quando ocorreram os acontecimentos desse dia 22 de Janeiro de 1974. A cena que relatámos anteriormente de conflito entre o representante do capital e o jovem de 16 anos que eu era, repetiu-se, nessa manhã, cerca de duas centenas de vezes. Tantas quanto o número de operários que ali trabalhavam e que, naquele dia, por questões de reivindicativa justiça salarial, resolveram não o fazer.

Sendo o pavilhão secundário como que filho do principal, ali labutavam os proletários admitidos mais recentemente, os mais novos, quer na empresa quer em idade; ficando o pavilhão principal para aqueles trabalhadores mais antigos na casa, alguns deles oriundos da oficina mãe do vão de escada, que mantinham ainda com o patronato uma espécie de relação de amizade pelo caminho que haviam percorrido em comum, quando ainda uns não eram mandantes e, outros, ainda não eram mandados. Esta premissa viria a influenciar, acentuadamente, todo o desenrolar dos acontecimentos.

Não admira pois que no pavilhão secundário, o primeiro a ser inquirido pela eminência patronal, sobre se queriam ou não trabalhar, a negação de iniciar labuta pelos abordados tenha tido uma adesão praticamente total; já no denominado pavilhão principal, sem que no secundário se percebesse muito porquê e, perante a pergunta do engenhocas, a resposta mais frequente foi, em vez do esperado não, ter-se começado a ouvir, com alguma frequência e intensidade, as rebarbadoras a chiar e os martelos a castigar o ferroso metal.

Estava assim encetado o princípio estratégico de dividir para reinar, e a partir dali, as “formigas” que haviam abandonado a caverna, teriam de lutar por si, embora se viessem a sair vitoriosas, os provimentos seriam para todo o formigueiro. O costume!

Foi assim que, enquanto metade daqueles que haviam iniciado a peleja já ajustavam moldes nas chapas, faziam deslizar com maestria o punção ou escopro batidos pelo martelo, riscavam com o traçador de ponta de diamante, serravam bocados de ferro, com as guilhotinas cortavam as chapas com violência, assentavam esqueletos de longarinas e pivôs nos gabaritos, soldavam a eléctrodo incandescente tirantes e degraus, ensaiavam lanças e contra-lanças, faziam rolar as calandras e tornos mecânicos, apertavam grampos, moldavam curvas nas bigornas, desempenavam cantoneiras, empilhavam vigas, faziam expirar os foles das forjas, acendiam maçaricos de oxigénio e gás metano, faziam furos de berbequim, rebarbavam chanfres para soldaduras, acertavam esquadrias, faziam deslizar pontes rolantes, ou experimentavam croquis... Nós, aqueles que tinham recebido e acatado a ordem de expulsão senhorial, deparámo-nos, subitamente, num grupo com cerca de uma centena de embotados à porta de entrada do pavilhão secundário, esperando o regresso do soberano, dispostos a tudo, para tentarmos em grupo, aquilo que não havíamos logrado individualmente.

Neves da Silva, não se fez esperar muito. Mesmo que nos quisesse fugir, aquela que era a porta de entrada, também era a única porta de saída e, janelas se existiam, ficavam demasiado altas para serem escaladas por sua excelência. Mostrando alguma coragem, aproximou-se do hostil grupo de enferrujados que, rapidamente, o rodearam e uma conversação estranhamente pacífica e respeitosa iniciou-se: Nós, alegando da necessidade do aumento salarial para fazer face ao aumento do custo de vida; ele, contra-argumentando tal impossibilidade, com a finalidade de manter a empresa viável. O trivial nestas coisas.

De considerando em considerando, de fundamento em fundamento, num diálogo de surdos, sem que qualquer das partes mostrasse vontade de ceder, passadas que foram duas horas a malhar ferro de língua, a entidade patronal lá anuiu a que os enferrujados poderiam voltar no próximo dia aos seus postos de trabalho, se assim o quisessem, pois ele anulava a ordem de despedimento. Quanto à reivindicação de aumento salarial? Essa nem em Maio, como vinha sendo tradição, quanto mais em Janeiro.
Sentença de patrão!

Não proliferava por essa época a comunicação social marialva de hoje, senão não faltariam declarações obstinadas, sobretudos para as televisões, de cada uma das partes a clamar por vitória, argumentado os representantes de uns “que tinha este processo de luta reivindicativa sido um êxito, pois havia-se conseguido uma adesão em números da paralisação de cem por cento por parte dos trabalhadores, que apesar de metade deles terem chegado a ser despedidos, o patronato teve que ceder e proceder à sua reintegração imediata, isto para além de ter sido um acto heróico, possivelmente até histórico, isto de fazer uma greve num regime totalitário que a proibia e, logo, o governo, como sempre ao lado do capital, também havia saído derrotado e, quem sabe, até ferido de morte”; pela outra parte, não deixaria de aparecer o Sr. Engenheiro, acompanhado, certamente, por três ou quatro capangas de gabardina cinzenta, que aliás o acompanharam sempre durante a sua deambulação pelos pavilhões fabris, defendendo “que mais uma vez a inegável responsabilidade desta administração, apoiada sempre por suas excelências as autoridades corporativas em representação do patriótico governo da nação, haviam levado a bom porto, e debelado mais uma pequena rebelião, em que, não mais de meia dúzia de trabalhadores metalúrgicos, certamente mal aconselhados, ou mesmo manipulados por forças ocultas, quiçá estrangeiras, contrárias aos reais interesses da nação portuguesa e adversas à pacífica convivência existente entre patrões e seus empregados, tão imbuídos no desenvolvimento do país no difícil momento que atravessamos face à difícil conjuntura externa, etc., etc., etc....”

Em conclusão: “lançados os foguetes, feitas as festas, alguém terá sempre de apanhar as canas”; ou ainda, mais apropriado para este caso, “depois de levantada a mesa, sempre alguém fica com as barbas untadas”. E foi o que veio acontecer.

Apesar de no dia seguinte todos termos voltado ao trabalho, uns mais envergonhados, outros menos, não podíamos ignorar que em termos de resultados, exceptuando a perda da produção de um dia de malhar no ferro por parte do patronato; os grandes perdedores do feito épico, haviam sido, como de costume os trabalhadores, que não viram concretizadas nenhuma das suas justas reivindicações, salvo o facto de, metade deles gozar o privilégio de terem passado três quartéis do vigésimo segundo dia do mês de Janeiro, do ano da revolução dos cravos de verga direita, que é o mesmo que dizer sem vergar a mola.

Nos quinze dias subsequentes nada aconteceu, e tudo parecia navegar num mar de rosas entre aquelas oito paredes. No entanto, as consequências tardias desta aventura não se fizeram esperar, já que, rapidamente, se concluiu que as tais figuras funestas de gabardina cinzenta, não tinham andado por ali apenas para se inteirarem do estado da arte de malhar no ferro ou a medir os decibéis dessa acção que tanto agrediam as expostas membranas timpânicas! Assim, em quase todas as manhãs seguintes, e, sucessivamente, lá dávamos pela falta de mais um! E, de sussurro em sussurro, lá se passava a notícia: “ a pide foi buscá-lo a casa esta noite e levaram-no para Caxias! Parece que pertencia ao partido dos comunistas e que esteve na génese da paralisação do outro dia. ”

Assim, em cada noite que chegava, eu, esperava a minha vez. Apesar de não ter qualquer ligação ao tal partido, ou qualquer outro, bem sabia que apesar da minha tenra idade, tinha sido um dos mais activos argumentista na revolta dos enferrujados na sessão de “enfrentamento” com o patronato.

Ditosamente, a madrugada de 25 de Abril ocorreu, e, sem que eu soubesse porquê, a minha vez de passar umas “férias” na praia do cagalhão nunca chegou!

Por tudo isto, o dia 22 de Janeiro ficou gravado na minha memória...

sábado, 21 de janeiro de 2012

Não estar, mas ficar na memória...

O clã Bugalhão perdeu hoje mais uma das suas raízes. Maria, aquela que todos conheciam por Júlia, partiu.

Júlia ou Maria Júlia, era certamente uma das mais lúcidas memórias da família, detentora de uma “memória de elefante”, foi ela que me passou muitas reminiscências do passado colectivo da nossa família. Para mim, ela terá sido como uma segunda mãe.

Sei que algures, um destes dias nos voltaremos a encontrar. Sei também, que para além de me repetir todas as estóreas que me contou na minha infância, não deixará de me presentear com mais um bocadinho da tal “coalhada”, pela qual eu suspirava, enquanto fazia o seu queixo mole...

É só mais um pouquinho na roda da vida...

“ai piroli, piroli
ai piroli, pirolé
se não gostas de agurardente com chocolate
bebe café...”


Hoje é um dia triste.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Estar; "mas já não estar..."




Se às vezes numa rua no lugar

eu penso que um dia hei-de morrer

sei que tudo o que tenho vou deixar

aqui onde hoje estou deixo de estar

e tudo quanto sou deixo de ser


medo da morte não consigo ter

mas outros mais humanos e banais

medos que a gente tem mesmo sem querer

como o medo que eu tenho de morrer


só por querer viver um pouco mais

se consigo a meu modo estar no céu

mesmo vivendo neste chão de inverno

se apenas sou árvore que cresceu

no espaço e no tempo que é o meu

para que havia eu de ser eterno


mas como as minhas cinzas vão ficando

debaixo de uma pedra de jardim

meu amor tu sabes onde me encontrar

e uma flor sobre a pedra vais deixar

de cada vez que lembrares de mim

de cada vez que te lembrares de mim