por Rui Rocha, aqui.
“Diz uma lenda
que um Deus, desses que proviam a algum povo primitivo, terá recebido um dia,
em audiência, uma delegação de macacos. Traziam-lhe uma única reivindicação:
queriam tornar-se homens. Viu-se assim o Deus em apertos pois, não querendo
desagradar à macacada, também não via com bons olhos um tal desenlace.
Conservador
seria, pois que estava ainda preso a uma visão do mundo em que aos macacos
correspondia o seu galho. E é possível até que existisse, que sabemos nós, uma
cláusula de exclusividade da condição de humanidade, assinada pelo punho do
próprio Deus, assegurada em contrapartida de todas as penas, provações,
angústias e privações que em geral calham ao Homem pela tão simples razão de
ser humano. Foi assim que o Deus, incómodo na cadeira, acabou por mandar a
simiesca representação, é um dizer, pentear os outros macacos. Não com estas
palavras, claro está, para não ferir susceptibilidades. Já então, nesses
começos deste nosso mundo, a questão dos sentimentos dos animais era tratada
com pinças. Até porque eram tempos em que eles próprios falavam, verbalizando
quanto lhes fosse na alma, que já então a tinham e bem sabemos que é assim porque
entretanto não a perderam.
Foi deste modo
que o Deus, entalado como estava, prometeu aos macacos que estes se tornariam
homens (e mulheres se fossem macacos fêmeas pois que, por esse então, as únicas
questões fracturantes incluídas na agenda mediática diziam respeito ao divergir
das placas tectónicas) logo que, passada a noite que já se avizinhava, raiassem
os primeiros afagos de sol sobre aquela parte do planeta que, por direito
próprio e natural, era também dos macacos. E assim foram os ditos à vida deles.
Com o rabo entre as pernas, não porque a reunião lhes tivesse corrido mal, bem
pelo contrário, mas porque era esse o lugar onde lhes era naturalmente mais
confortável tê-lo.
O certo é que
assim que o Deus tirou os macacos de debaixo do nariz (tirá-los de dentro é coisa
de homens, imprópria da condição divina) pegou na trouxa onde guardava os
prodígios, que eram basicamente trovoadas, aguaceiros e acentuado arrefecimento
nocturno, e foi ganhar a vida para outras paragens estabelecendo-se, ao que se
sabe, junto de uma tribo que vivia por alturas do local onde hoje é Roma. O
certo é que os macacos, que mal pregaram olho, viram ao nascer do dia toda a
sua ilusão defraudada. E começaram em guinchos angustiados e desesperados
urros. Coisa que, por esse único e exacto motivo, ainda hoje fazem, tal como
podemos comprovar, à falta de melhor, no zoológico mais próximo ou em qualquer
filme do Tarzan.
Ora, pelo que leio, têm por estes dias os juízes do Supremo Tribunal de Nova Iorque a
oportunidade de, com uma só decisão, reporem a Justiça, substituindo-se ao Deus
incumpridor e a Darwin. Basta para tal que reconheçam a um chimpanzé,
representado pelo seu advogado, o direito de ser considerado pessoa jurídica.
Isto é, ali onde o tal Deus não foi sequer capaz de escrever direito por linhas
tortas, pode o bom Tribunal estabelecer uma linha recta entre o chimpanzé, a
ética e o fundamento ontológico. Se for assim, os macacos poderão finamente
substituir os ontens que guincham e urram por manhãs em que cantam. Trata-se,
se virmos bem, de um pequeno passo para a humanidade e de uma patada de gigante
para os macacos.
Temo, todavia, que os motivos para festejar sejam efémeros. Se está demonstrado que um macaco com um teclado acabará mais tarde ou mais cedo por escrever uma obra de Shakespeare, nada impede que um outro, mais peludo, descubra um dia, tal como Kant, os pressupostos tortuosos da culpa e da obrigação. A pessoa jurídica macaco, então já unanimemente reconhecida nos códigos legais, deixará de ser um mero portador de direitos para passar a ser também, tal como os homens e as mulheres, sujeito (por oportuníssima contraposição a objecto) a deveres e punições. Ora, ou me engano muito ou isso poderá significar, mais cedo do que tarde, o fim da macacada.”
Sem comentários:
Enviar um comentário