Faz hoje
precisamente 15 anos (1998), que foi atribuído o Prémio Nobel a José Saramago, único
até hoje a um escritor de língua portuguesa. Lembrar Saramago e a sua obra, para
quem a conhece, é um privilégio. E nada melhor que relembrar o seu discurso em Estocolmo por essa altura.
Esta primeira
parte, que aqui publico, é um hino à humildade, mas também à sabedoria do homem
evocado, seu avô. Simultaneamente, deveria ser lido pelos profetas da desgraça
que campeiam por aí, quando declaram, nunca em Portugal se ter vivido tão mal
como nos tempos actuais: simples
ignorantes...
“O homem mais
sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da
madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França,
levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de
porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez
os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame,
eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do
Ribatejo.
Chamavam-se
Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.
No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros
gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e
levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos
livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda
que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que
os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem
retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para
manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.
Ajudei muitas
vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a
terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando
voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água
do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos
guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de
ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois
haveria de servir para a cama do gado.
E algumas vezes,
em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje
vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras,
mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de
sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por
antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a
saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da
árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de
uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio
pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de
Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia.
Enquanto o sono
não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia
contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas,
zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de
memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha
adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à
pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele
calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as
histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as
enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós
todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era
senhor de toda a ciência do mundo.
Quando, à
primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava
ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então
levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até
aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada
do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha
avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com
pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum
mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não
faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó,
embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu
avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era
capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos
anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem
feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos.
Outra coisa não
poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre
casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima
da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu
tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de
morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua
estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e
derradeira despedida, a consolação da beleza revelada.
Estava sentada à
porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque
nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias
filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito,
gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao
pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu
quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as
tornaria a ver.
Muitos anos
depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha
avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a
conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que
estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens
literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer,
desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da
recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem
horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a
irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver...”
Quem quiser ler
o resto pode fazê-lo aqui.
3 comentários:
1998 amigo JB
Claro que sim, mi: é 1998 já rectifiquei. As minhas desculpas e obrigado.
Já começo a confundir as décadas! Ai a pdi....
Não conhecia, na íntegra, o discurso dele, agora ainda o admiro mais.
Reli há pouco tempo o Levantado do Chão, um dos livros que mais me emociona por ver nele tanto da realidade dos meus avós paternos. Agradeço ao meu pai ter-me contagiado com a boa literatura portuguesa.
Um abraço
Enviar um comentário