terça-feira, 13 de maio de 2014

Memórias....


Para meu primo António, com quem partilhei boa parte da minha infância, e que me fez chegar esta “relíquia” perdida no tempo.



Em cima e ao fundo, a bancada superior apresenta um efeito de estar apinhada de adeptos fanáticos. O vento sopra de suão nas quinze bandeiras implantadas na pala, fazendo-as esvoaçar no sentido da esquerda para a direita. Embora só oito apareçam visíveis, as restantes também lá estavam. Sumiram-se. Quem sabe se devido à erosão do cenário por andar de feira em feira, se ao envelhecimento de meio século do retrato que agora contemplamos. Não faltarão aqueles que, ao observarem a imagem, porão em dúvida esta peremptória afirmação sobre o sentido do vento, já que, para os figurantes da imagem, sucede exactamente o contrário. É um pouco como no exame daquele estudante de anatomia, que quando questionado sobre de que lado, nos humanos, ficaria o fígado, este, sem que tivesse a mínima ideia, mas sabendo que tinha cinquenta por cento de hipóteses de acertar, resolveu arriscar que, o dito, ficava à esquerda! Mas perante a cara de contrariado do examinador, e vendo que, certamente, teria errado, se apressou a corrigir: bem, meu caro senhor, fica à esquerda de quem sai, mas, desde que o mundo é mundo, sempre esteve à direita de quem entra.

Com esta retórica, podemos quiçá, concluir talvez, que na vida, tudo tenha o seu quê de relatividade, e, na maioria das situações relatadas à distância, muitas das descrições, dependem sempre mais do narrador, do que da verdade dos factos ocorridos. Não nos faltam disso exemplos na história dos homens. No entanto, para que não restem dúvidas, pelo menos neste caso, encontrando-se o cenário usado encostado à parede lateral virada a nascente, da igreja de Santo António das Areias, por altura da feira anual de São Marcos em 1970, e que a sul se pode observar o imponente castelo de Marvão, sendo o vento, suão, não sendo crível que o retratista do “olha o passarinho”, se tenha posto no telhado da dita igreja, fácil será concluir, que o vento só poderia soprar no sentido Marvão – Areias, e dali ir assobiando, como tantas vezes faz, até aos confins dos montes hermínios maiores.

Na parte inferior, a imagem de uma bola, que está ao centro e parece desfrutar do prazer de repousar sobre um tapete de cor escura, possivelmente verde se o retrato fosse colorido. Tem aspecto de ser de boa qualidade, talvez de cautchu, o melhor que se dizia existir naqueles tempos, mas que a rapaziada da minha idade, apelidava de “cabo de chumbo”. Nada tinha a ver com as de trapo, borracha, ou de plástico, que eram as únicas a que tinham-mos acesso. Essas tais do cautchu só as víamos nas fotos dos jornais, ou no cartaz das rifas de cromos da bola do ti Zé Boto. Nunca percebi porque lhe chamávamos, “cabo de chumbo”? Se era um portuguesismo do cautchu, tal como hoje se usam inglesismos a torto e a direito; se era devido ao facto, dos fundos que amealhávamos, para tentar arrematar a totalidade das rifas finais, onde saía a tal bola de “cabo de chumbo”, ser proveniente das vendas ao ferro-velho de restos de tubos de chumbo usados nas canalizações da época. Mas infelizmente, nunca a verba nos chegou para tal, e assim, a dita, nunca passou de uma ilusão.

Mas o que sobressaia, verdadeiramente, no cartaz desse cenário na barraca dos feirantes das festas do São Marcos, era a imagem de duas criaturas humanas, que tinham no lugar da cabeça dois buracos. Parecia que interpretavam um qualquer bailado clássico, tal a harmonia que parecia existir em seus gestos. Não havia dúvidas que se tratavam de figuras masculinas. Não apenas por os membros inferiores serem muito musculados, ou porque no decote exagerado das camisolas se divisasse qualquer relevo identificativo de género feminino, mas sobretudo porque, naquela época, o futebol não era coisa para mulheres.

Seguindo a teoria em cima enunciada, isto é, o olhar na óptica do observador, a imagem da criatura da direita enverga uns calções brancos e uma camisola de cor escura, enquanto a da esquerda parece envergar uns calções pretos e uma camisola com barras horizontais cinzentas tendo ao peito a insígnia, sem dúvida de um leão. Na da direita é impossível decifrar o símbolo. No entanto, estas cores não passam de pura ilusão, com excepção dos brancos e dos pretos. Na realidade, aquilo que aqui apelidamos de cor escura era de um vermelho berrante como diz a canção, e, as barras cinzentas da outra eram, para continuar no mundo vegetal, de um verde alface vivo. Consequências de uma época, como apelidavam alguns, de um tempo cinzento, ou ainda, mais concretamente, por a arte ainda viver na era da tecnologia das sombras, e essas, como sabemos, sempre foram a pretas e brancas e cinzentas.

Mas deixemo-nos desde hábito tão português de nos fixarmos no supérfluo, e vamos ao essencial, que já vai longa a história, e, talvez a coisa não valha tanto. O que representava esse cartaz era um cenário imaginário de um jogo de pontapé na bola, e que fruto de mais um inglesismo, passou a ser denominado por estas paragens, de fut-e-bol. Os protagonistas são duas figuras que representam os dois grandes clubes rivais de Portugal por essa época: o da esquerda o Sporting e o da direita o Benfica. Tinham estas figuras no lugar do crânio, como já dissemos atrás, um buraco de formato oval, onde a rapaziada, envaidecida, enfiava a fronha, e assim podiam gabar-se aos incautos amigos: “olhe aqui eu quando jogava no Benfica, diziam os lampiões; ou no Sporting, reclamavam os do lado dos lagartos”.

Neste caso, os donos desses crânios eram dois rapazinhos: o João e o António, primos entre si, já que o pai de um e a mãe de outro tinham nascido irmãos na década de vinte do século passado, ali para os lados Pego Ferreiro, no seio de uma família de moleiros. Tinham nessa altura treze anos de idade. António fê-los nesse mesmo dia, João já levava 22 dias de avanço. Já ambos trabalhavam por conta de outrem: João na arte de fazer sapatos, António na arte de fazer pão, e foi com os proveitos que daí lhes advinham, que puderam pagar, cada um, os cinco mil reis que lhes custou o efígie que agora contemplamos.

A sua história comum havia começado por alturas do estio de 1956, quando Luísa, futura mãe de João, sentindo falta das regras já há mais de quinze dias, demandou a casa de sua cunhada Emília, futura mãe de António, perguntando-lhe se esta não conheceria qualquer coisa que repusesse as coisas no sítio, mas Emília, tão embaraçada quanto Luísa, responder-lhe-ia apoquentada: ai mana, eu acho que estou na mesma! E sendo tais aqueles tempos, que foi assim que as duas, nove meses depois, e com um intervalo de três semanas, viriam a dar à luz os dois cromos que aqui contemplamos.          

Viveram os dois primos uma infância comum até aos cinco anos de idade, como se de irmãos gémeos se tratassem, já que suas casas na Ribeira da Ponte Velha, distanciavam poucas centenas de metros: a de João no moinho do Balcão, a de António, um pouco mais a sul, no sítio da Carapeta. O seu percurso de vida, durante este período, foi idêntico ao de tantas outras crianças daquele tempo que cresciam em liberdade pelos campos, carecendo e reclamando de seus progenitores, pouco mais que o satisfazer das necessidades de alimentação, e de alguma escassa higiene já que o rio estava mesmo ali à mão. Nem faltou a estes dois, por volta dos quatro anos de idade, o seu episódio bíblico de irmãos desavindos, que segundo a mãe de João, só não teve o mesmo desenlace, porque ela terá chegado a tempo de o evitar, quando um certo dia António, sempre mais matulão e pujante, tendo já seu primo João pequenino sob seu corpo, se preparava de calhau empunhado, para, possivelmente, lhe dar o destino que Caim terá dado a Abel. Sempre algumas mães chegam na altura certa. Ao contrário daquela mãe da bíblia, que parece, quando chegou, já os correligionários de seu filho lhe haviam dado a morte. Coisas do mundo.

Felizmente que não foi o caso deste nosso João, que aqui vemos, por altura da feira do São Marcos, retratado com corpo emprestado de um «Peres ou um Lourenço», equipando “à Sporting”, que nesse ano haveria de ser campeão nacional. Certamente por isso, nem se importou de ceder a imagem representativa do seu clube do coração, “o glorioso”, a seu primo António, que aqui aparece numa pose de fazer inveja a «Humberto ou Toni», os craques benfiquistas da época, mas que nesse ano, quem sabe se devido a este "reforço", tiveram que se contentar com o segundo lugar do campeonato.

2 comentários:

Helena Barreta disse...

São dessas e de outras relíquias que se faz a nossa história e se traçam caminhos e afectos.

Saltou-me logo o olho para o equipamento do seu primo, mas afinal era só para a fotografia.

Um abraço.

P.S.: boa sorte para logo

zira disse...

Isto sim. É relatar com graça, emoção uma época de vida muito interessante.