Para meu primo António, com quem partilhei
boa parte da minha infância, e que me fez chegar esta “relíquia” perdida no
tempo.
Em cima e ao
fundo, a bancada superior apresenta um efeito de estar apinhada de adeptos
fanáticos. O vento sopra de suão nas quinze bandeiras implantadas na pala, fazendo-as
esvoaçar no sentido da esquerda para a direita. Embora só oito apareçam visíveis,
as restantes também lá estavam. Sumiram-se. Quem sabe se devido à erosão do cenário
por andar de feira em feira, se ao envelhecimento de meio século do retrato que
agora contemplamos. Não faltarão aqueles que, ao observarem a imagem, porão em
dúvida esta peremptória afirmação sobre o sentido do vento, já que, para os
figurantes da imagem, sucede exactamente o contrário. É um pouco como no exame
daquele estudante de anatomia, que quando questionado sobre de que lado, nos
humanos, ficaria o fígado, este, sem que tivesse a mínima ideia, mas sabendo
que tinha cinquenta por cento de hipóteses de acertar, resolveu arriscar que, o
dito, ficava à esquerda! Mas perante a cara de contrariado do examinador, e
vendo que, certamente, teria errado, se apressou a corrigir: bem, meu caro
senhor, fica à esquerda de quem sai, mas, desde que o mundo é mundo, sempre
esteve à direita de quem entra.
Com esta retórica, podemos quiçá, concluir talvez, que na vida, tudo tenha o seu quê de relatividade, e, na maioria das situações relatadas à distância, muitas das descrições, dependem sempre mais do narrador, do que da verdade dos factos ocorridos. Não nos faltam disso exemplos na história dos homens. No entanto, para que não restem dúvidas, pelo menos neste caso, encontrando-se o cenário usado encostado à parede lateral virada a nascente, da igreja de Santo António das Areias, por altura da feira anual de São Marcos em 1970, e que a sul se pode observar o imponente castelo de Marvão, sendo o vento, suão, não sendo crível que o retratista do “olha o passarinho”, se tenha posto no telhado da dita igreja, fácil será concluir, que o vento só poderia soprar no sentido Marvão – Areias, e dali ir assobiando, como tantas vezes faz, até aos confins dos montes hermínios maiores.
Com esta retórica, podemos quiçá, concluir talvez, que na vida, tudo tenha o seu quê de relatividade, e, na maioria das situações relatadas à distância, muitas das descrições, dependem sempre mais do narrador, do que da verdade dos factos ocorridos. Não nos faltam disso exemplos na história dos homens. No entanto, para que não restem dúvidas, pelo menos neste caso, encontrando-se o cenário usado encostado à parede lateral virada a nascente, da igreja de Santo António das Areias, por altura da feira anual de São Marcos em 1970, e que a sul se pode observar o imponente castelo de Marvão, sendo o vento, suão, não sendo crível que o retratista do “olha o passarinho”, se tenha posto no telhado da dita igreja, fácil será concluir, que o vento só poderia soprar no sentido Marvão – Areias, e dali ir assobiando, como tantas vezes faz, até aos confins dos montes hermínios maiores.
Na parte
inferior, a imagem de uma bola, que está ao centro e parece desfrutar do prazer
de repousar sobre um tapete de cor escura, possivelmente verde se o retrato
fosse colorido. Tem aspecto de ser de boa qualidade, talvez de cautchu, o melhor que se dizia existir
naqueles tempos, mas que a rapaziada da minha idade, apelidava de “cabo de chumbo”.
Nada tinha a ver com as de trapo, borracha, ou de plástico, que eram as únicas
a que tinham-mos acesso. Essas tais do cautchu
só as víamos nas fotos dos jornais, ou no cartaz das rifas de cromos da bola do
ti Zé Boto. Nunca percebi porque lhe chamávamos, “cabo de chumbo”? Se era um
portuguesismo do cautchu, tal como
hoje se usam inglesismos a torto e a direito; se era devido ao facto, dos
fundos que amealhávamos, para tentar arrematar a totalidade das rifas finais, onde
saía a tal bola de “cabo de chumbo”, ser proveniente das vendas ao ferro-velho de restos de tubos de chumbo
usados nas canalizações da época. Mas infelizmente, nunca a verba nos chegou
para tal, e assim, a dita, nunca passou de uma ilusão.
Mas o que
sobressaia, verdadeiramente, no cartaz desse cenário na barraca dos feirantes
das festas do São Marcos, era a imagem de duas criaturas humanas, que tinham no
lugar da cabeça dois buracos. Parecia que interpretavam um qualquer bailado
clássico, tal a harmonia que parecia existir em seus gestos. Não havia dúvidas
que se tratavam de figuras masculinas. Não apenas por os membros inferiores
serem muito musculados, ou porque no decote exagerado das camisolas se divisasse
qualquer relevo identificativo de género feminino, mas sobretudo porque,
naquela época, o futebol não era coisa para mulheres.
Seguindo a
teoria em cima enunciada, isto é, o olhar na óptica do observador, a imagem da
criatura da direita enverga uns calções brancos e uma camisola de cor escura,
enquanto a da esquerda parece envergar uns calções pretos e uma camisola com
barras horizontais cinzentas tendo ao peito a insígnia, sem dúvida de um leão.
Na da direita é impossível decifrar o símbolo. No entanto, estas cores não
passam de pura ilusão, com excepção dos brancos e dos pretos. Na realidade, aquilo
que aqui apelidamos de cor escura era de um vermelho berrante como diz a
canção, e, as barras cinzentas da outra eram, para continuar no mundo vegetal,
de um verde alface vivo. Consequências de uma época, como apelidavam alguns, de
um tempo cinzento, ou ainda, mais concretamente, por a arte ainda viver na era
da tecnologia das sombras, e essas, como sabemos, sempre foram a pretas e
brancas e cinzentas.
Mas deixemo-nos
desde hábito tão português de nos fixarmos no supérfluo, e vamos ao essencial,
que já vai longa a história, e, talvez a coisa não valha tanto. O que
representava esse cartaz era um cenário imaginário de um jogo de pontapé na
bola, e que fruto de mais um inglesismo, passou a ser denominado por estas
paragens, de fut-e-bol. Os
protagonistas são duas figuras que representam os dois grandes clubes rivais de
Portugal por essa época: o da esquerda o Sporting e o da direita o Benfica.
Tinham estas figuras no lugar do crânio, como já dissemos atrás, um buraco de
formato oval, onde a rapaziada, envaidecida, enfiava a fronha, e assim podiam
gabar-se aos incautos amigos: “olhe aqui eu quando jogava no Benfica, diziam os
lampiões; ou no Sporting, reclamavam os do lado dos lagartos”.
Neste caso, os
donos desses crânios eram dois rapazinhos: o João e o António, primos entre si,
já que o pai de um e a mãe de outro tinham nascido irmãos na década de vinte do
século passado, ali para os lados Pego Ferreiro, no seio de uma família de
moleiros. Tinham nessa altura treze anos de idade. António fê-los nesse mesmo
dia, João já levava 22 dias de avanço. Já ambos trabalhavam por conta de
outrem: João na arte de fazer sapatos, António na arte de fazer pão, e foi com
os proveitos que daí lhes advinham, que puderam pagar, cada um, os cinco mil
reis que lhes custou o efígie que agora contemplamos.
A sua história
comum havia começado por alturas do estio de 1956, quando Luísa, futura mãe de
João, sentindo falta das regras já há
mais de quinze dias, demandou a casa de sua cunhada Emília, futura mãe de
António, perguntando-lhe se esta não conheceria qualquer coisa que repusesse as
coisas no sítio, mas Emília, tão
embaraçada quanto Luísa, responder-lhe-ia apoquentada: ai mana, eu acho que
estou na mesma! E sendo tais aqueles tempos, que foi assim que as duas, nove
meses depois, e com um intervalo de três semanas, viriam a dar à luz os dois
cromos que aqui contemplamos.
Viveram os dois
primos uma infância comum até aos cinco anos de idade, como se de irmãos gémeos
se tratassem, já que suas casas na Ribeira da Ponte Velha, distanciavam poucas
centenas de metros: a de João no moinho do Balcão, a de António, um pouco mais
a sul, no sítio da Carapeta. O seu percurso de vida, durante este período, foi
idêntico ao de tantas outras crianças daquele tempo que cresciam em liberdade
pelos campos, carecendo e reclamando de seus progenitores, pouco mais que o satisfazer das necessidades de alimentação, e de alguma escassa higiene já que o rio estava
mesmo ali à mão. Nem faltou a estes dois, por volta dos quatro anos de idade, o
seu episódio bíblico de irmãos desavindos, que segundo a mãe de João, só não
teve o mesmo desenlace, porque ela terá chegado a tempo de o evitar, quando um
certo dia António, sempre mais matulão e pujante, tendo já seu primo João
pequenino sob seu corpo, se preparava de calhau empunhado, para, possivelmente,
lhe dar o destino que Caim terá dado a Abel. Sempre algumas mães chegam na
altura certa. Ao contrário daquela mãe da bíblia, que parece, quando chegou, já
os correligionários de seu filho lhe haviam dado a morte. Coisas do mundo.
Felizmente que
não foi o caso deste nosso João, que aqui vemos, por altura da feira do São
Marcos, retratado com corpo emprestado de um «Peres ou um Lourenço», equipando “à
Sporting”, que nesse ano haveria de ser campeão nacional. Certamente por isso,
nem se importou de ceder a imagem representativa do seu clube do coração, “o
glorioso”, a seu primo António, que aqui aparece numa pose de fazer inveja a «Humberto
ou Toni», os craques benfiquistas da época, mas que nesse ano, quem sabe se devido a este "reforço", tiveram que se
contentar com o segundo lugar do campeonato.
2 comentários:
São dessas e de outras relíquias que se faz a nossa história e se traçam caminhos e afectos.
Saltou-me logo o olho para o equipamento do seu primo, mas afinal era só para a fotografia.
Um abraço.
P.S.: boa sorte para logo
Isto sim. É relatar com graça, emoção uma época de vida muito interessante.
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