Dedico este Post ao meu sobrinho Luís
Bugalhão. Para memória futura:
CAPÍTULO I – Escrito em Janeiro de 2010
Recorde-me hoje,
com algum detalhe, e passados 36 anos, do dia 22 de Janeiro de 1974. Portugal,
nesse período, era governado pelo Estado Novo, que se caracterizava por ser um
regime autoritário, conservador, nacionalista, corporativista, de inspiração
fascista, anti-parlamentarista, anti-comunista, e colonialista. O regime tinha
a sua própria estrutura de Estado, e um aparelho repressivo (PIDE, colónias
penais para presos políticos, etc.), característico dos chamados Estados
policiais, apoiando-se na censura, nas organizações
paramilitares: Legião Portuguesa, e as suas organizações juvenis (Mocidade
Portuguesa), no culto do "Chefe" autoritário. Encontrava-se ainda
envolvido numa Guerra Colonial desde 1961, contra os Movimentos de Libertação das
Colónias Africanas, para onde enviava, a combater, os seus jovens na flor da idade
(com 20 anos), para matarem, e muitos aí morrerem.
A nível laboral,
o país era dominado pelas Corporações, que tinham o seu próprio Ministério no
Governo. As relações entre os trabalhadores e patrões eram, basicamente,
reguladas pelo poder patronal, com uma fraca contratação colectiva.O
movimento sindical era dominado por essas mesmas Corporações, que aí se faziam
representar por trabalhadores por si indicados, existindo, no entanto, por essa
data, algumas excepções em sindicatos onde os trabalhadores conseguiam
colocar os seus representantes, como era o caso dos Metalúrgicos. A palavra
“GREVE” era vocábulo proibido, e amargava na boca daqueles que a pronunciavam, pois a promessa de passarem 6 meses de “férias” em Caxias, no Aljube, ou
em Peniche, era quase garantida.
O desemprego não
existia desde meados dos anos sessenta. Estávamos em plena “era dourada”, da
revolução industrial portuguesa. Novos e velhos (que nessa época eram poucos),
homens e mulheres, todos os dias arranjavam trabalho, e/ou mudavam de patrão,
perante aquele que lhe oferecesse melhores condições e melhor recompensa. No entanto, a
partir de 1972, e após a primeira “crise do petróleo”, que as dificuldades
começaram a aumentar, e, no início do ano de 1974, só com um poder
reivindicativo forte, ou com um “patrão bom”, se conseguia que o patronato lá
fosse abrindo os cordões à bolsa, com um pequeno aumento salarial,
para fazer face ao aumento do custo de vida e inflação.
Por essa altura,
eu era um moço de 16 anos, isto é, um adolescente, como hoje são designados os
jovens dessa idade, mas já carregava comigo 5 anos de trabalho como assalariado.
Primeiro, entre 1969 e 1971 na empresa Celtex em Santo António das
Areias; e a partir de Julho de 1971, como Aprendiz de Serralheiro
Civil numa empresa de metalomecânica no concelho de Sintra (para onde tinha
“emigrado” para poder estudar), de seu nome: Cacém Industrial Metalúrgico.
Era usual, nessa
empresa, que em todos os anos em Maio, o patrão Neves procedesse a alguns
aumentos de ordenados, consoante o nosso comportamento individual ao longo do
ano. No meu caso, foi assim que, em 1972 passei de 30 para 35 escudos diários (6
dias por semana, num total de 48 horas semanais), e no ano seguinte, tinha progredido para uma quantia de 43 escudos por jornada diária de 8 horas.
Mas o ano de
1973 já não havia sido fácil para a economia portuguesa. A inflação tinha disparado como
há muito não acontecia, e começou a sussurrar-se, em pequenos grupos, que o
melhor seria que o patrão Neves fizesse a tradicional actualização salarial logo do mês de Janeiro, para ver se a malta conseguia aguentar-se, e usufruir
da possibilidade de ter mais “algum”, daquele com que se compravam e compram os
“melões” bem como outros bens essenciais, e que por essa altura eram pouco mais
que o pão, o leite e o vinho.
Só que,
contactado o “sr. engenheiro”, pelos operários mais velhos da casa (quais
delegados sindicais ou comissões de trabalhadores, que ainda estavam para
nascer), este mandou dizer, e nada bem disposto com a ideia: “que nem pensar, nem em Janeiro, e o
mais que provável, era que nem em Maio, porque a vida estava difícil para todos
e, os patrões, também não andavam propriamente a nadar em dinheiro”.
Este recado de
negação absoluta, diga-se desde já, não caiu nada bem no peito daqueles cerca
de duzentos homens e rapazes, oxidados por fora e por dentro, à reivindicação,
que, na nossa perspectiva, nos parecia mais que justa, e, sem se saber muito
bem como, a palavra interditada GREVE,
começou a circular de boca em boca.
Não sei ainda,
até aos dias de hoje, a génese de tal devaneio de andar-se a pedir aumentos e a importunar os tão "bons" dos patrões. Havia quem dissesse, mais
tarde, que a iniciativa havia surgido do nada, e como tantas vezes acontece: um
homem lembrar-se no seu âmago, de uma sensação de injustiça, de uma paixão de
causas, de um sentimento reprimido e, zás, vamos a isto que se faz tarde. Mas,
sempre houve aqueles que, afiançavam, que por detrás de tal génese estavam as
tais “lebres”, que nos fala o Saramago, em Levantado do Chão.
O facto é que,
pelas 10 horas, do dia 22 de Janeiro, e quatro meses antes do futuro Dia da
Liberdade, e, da GREVE se tornar uma coisa banal e de arremesso político
partidário, os cerca de 200 proletários
da CIM, fizeram ali naqueles pavilhões de trabalho e suor, um silêncio sepulcral
naquele arraial de “malhar ferro”, e, mandaram dizer ao patrão Neves, que a partir daquela hora, estavam em greve, até
que ele decidisse proceder à justa actualização salarial.
Eu era um deles e, claro, também aderi…
Capítulo II – Escrito em Janeiro de 2011
Parece que foi
ontem, e já passou um ano desde que aqui vos contei a primeira parte, desta
minha aventura de 22 de Janeiro de 1974. É assim o tempo, esse maganão que
nunca pára, avançando sempre, sem contemplações, indiferente ao bom ou mau
(tempo) de acordo com a perspectiva de cada um.
Quando penso
nesta questão do “tempo”, ou como ele passa apressadamente, vem-me sempre à memória
aquela alusão de Saramago, sobre a sua avó materna, de nome Josefa Caixinha,
feita no discurso de recepção do Prémio Nobel da Literatura, quando este
recordava estas suas palavras:
“… o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada...”
Mas vamos em frente (no tempo), que o que aqui quero partilhar convosco, não é propriamente literatura, e muito menos poesia, mas antes um acontecimento único e que me marcou para a vida. Para uma actualização integral, se já caiu no vosso esquecimento, recomendo que recueis há um ano atrás e, carregando ali, na “caixinha” (que não é a avó do José) do lado direito, no ano de 2010, mês Janeiro, do Blogue Retórica bugalhónica, lá hão-de encontrar um artigo, com o mesmo título do de agora, para poderem fazer o enquadramento da história.
A Greve, naquele
tempo, era para a maioria de nós, uma coisa assim como o longínquo ano 2000,
que as profecias anunciavam ser, o ano do fim do mundo, algo que se ouvia
murmurar, mas que, certamente, não existiria. Estar, num impulso, metido no seu
seio, ficava-se assim como uma criança que vai ao “comboio fantasma” pela primeira vez, mesmo que acompanhada pelos
pais.
Se eu sabia, por nessa altura, que era proibido fazer greve? Claro que sabia. Se sabia que existia a
policia política PIDE, que tudo controlava? Claro que sim. Se sabia que todos
os dias iam parar a Caxias, Aljube ou Peniche, pessoas por apenas contestarem a
ordem vigente? Sem dúvida. Se sabia que as pessoas que aí eram aprisionadas,
eram vilmente torturadas, às vezes até à morte? Claro que não podia ignorar:
via, ouvia e lia. No entanto, para mim, jovem aventureiro de 16 anos, entrei
nessa “estação fantasma”, sem medir prós ou contras, apenas movido por aquilo
que me parecia ser o mais elementar sentido de justiça: lutar pela melhoria de condições de vida. Isso bastava-me, depois
logo se veria.
Durante as
primeiras duas horas, isto é, até ao meio-dia desse dia 22 de Janeiro, hora em que íamos
almoçar, nada sucedeu. Apenas algumas conversas fúteis sobre a vida, e que no meu
caso específico, certamente, seria alguma combinação com o camarada do lado,
sobre a hora e o local do bailarico do próximo fim-de-semana. Ou, lembro-me lá,
uma qualquer discussão “futeboleira” sobre rivalidades de benfiquismo/sportinguismo, já que os tripeiros naquelas paragens, para além de raros,
naquela tempo ainda não contavam para o campeonato.
Após almoço
ligeiro, transportado em “lancheira”, comido ao ar livre, sentado numa qualquer
pedra mais saliente, ingerido directamente da dupla marmita de alumínio,
habitada num compartimento pela sopa de legumes, e no outro, por alguns restos
de guisado da noite anterior acompanhado de pequenas sopas de carcaça, lá regressámos ao silêncio cavernoso do posto de trabalho, que mais
acertado seria, chamar-se naquele dia: posto de greve. Passava pouco das 14
horas, quando à entrada do pavilhão principal da oficina, surgiu,
repentinamente, o patrão Neves da Silva, na sua figura altiva, agasalhado com o
seu impecável sobretudo preto, acompanhado do “encarregado-geral”, e do chamado “guarda-livros”.
Visto de
longe, a cerca de cinquenta metros em linha recta, via-o movimentar-se
bruscamente dirigindo-se, individualmente, a cada um dos meus camaradas
operários metalúrgicos, que ocupavam o seu local de greve. Dirigia-lhes algumas
palavras, em voz bastante alta e alterada, mas que, pela distância a que
estavam de mim, me era impossível enxergar. Após o breve monólogo que travava com cada um,
e como formigas num carreiro, os contactados grevistas, sem excepção, lá se iam dirigindo
para a porta da rua.
Quando chegou a
minha vez, senti-me como que a enfrentar um pelotão de fuzilamento, embora a dúvida do
conteúdo do monólogo com a entidade patronal, já se haver esfumado, pois já
ouvira bem claro, o que se passara com aqueles que mais próximos estavam de
mim. E assim, foi sem qualquer surpresa, que ouvi da boca do senhor Engenheiro
Neves, a pergunta que repetia pela quinquagésima vez:
- O “senhor” quer ou não trabalhar?
“Ainda passou
pela cabeça argumentar que Sim, que queria! Que gostava muito daquele trabalho, e
precisava dele como do pão para a boca! Mas, que o senhor
engenheiro fosse criterioso, pois bem sabia, que o custo da vida estava pelas
horas da morte, que as rendas de casa tinha aumentado, até a electricidade em casa já
andava a ser substituída por velas; o comboio, já custava seis escudos do Cacém
para Lisboa, e até pela “bica” já custava vinte e cinco tostões; ir ao cinema? Só
no “piolho” aqui da terra! Saiba, o senhor engenheiro, que a malta mata-se aqui a trabalhar, a
dar o litro dez horas por dia; eu, uma criança como pode ver e que ainda devia estar na escola, pela manhã até já cuspo
ferrugem deste maldito óxido de ferro e, à noite, só oiço “grilos” a cantar nas orelhas;
os maganos daqueles sarracenos não param de aumentar o preço do petróleo, e como o senhor sabe, quando aumenta o crude, aumenta tudo! O patrão bem sabe,
que fomos nós, com o nosso trabalho, que fizemos esta média empresa, e não se esqueça
que, ainda há três anos, funcionava num “vão de escada”. E já agora, senhor
engenheiro, o que era isso para si de, apenas mais dez escudos por dia a cada
um de nós? Etc., etc.….”
Mas não. Baixei
a cabeça, por ser a primeira vez que estava tão de perto com tamanha eminência,
não prenunciei uma só palavra, e lá segui no formigueiro, para a porta de
saída. Evitando assim, ao Sr. Neves da Silva, a palavra por si mais repetida
naquele dia: RUA!
Capítulo III – Escrito em Janeiro de 2012
Como já havíamos
revelado no Capítulo anterior, esta «média empresa CIM», não passava há três
anos atrás, de uma pequena oficina familiar de vão de escada, com meia dúzia de
operários que, praticamente, executavam apenas obra miúda, tal como: portas, portões e janelas em ferro, para protecção das propriedades privadas das redondezas.
Havia sido concebida e criada “a meias” entre dois sócios, em que um, à boa maneira portuguesa, se havia desenvencilhado do segundo, assim que
a coisa começou a prosperar e dar rendimentos.
As instalações
de produção eram constituídas por dois grandes pavilhões contíguos que, embora
iguais no seu formato parecendo irmãos, poder-se-ia antes dizer, que um havia
parido o outro, sendo assim um o principal e o outro o secundário. Ali eram
construídas toda a gama de maquinaria para a Construção Civil desde gruas a betoneiras,
até silos e cofragens. Ali trabalhavam mais de duzentos operários entre
traçadores, cortadores, torneiros, maçariqueiros, ferramenteiros, desempenadores,
serralheiros civis e mecânicos, soldadores, serventes para toda a obra, montadores,
electricistas, fresadores, aprendizes, praticantes de tudo e de nada,
controladores de produção e qualidade, chefes de secção e gerais, etc., etc.
Digamos que, de grosso modo, ferro era connosco.
Apesar desta vocação
institucional pelo metal, ainda me lembro como se fosse hoje do episódio de
praxe do “martelo de desempenar borracha”, a que fui submetido, quando
estava no segundo dia de tirocínio da arte do malhar ferro, e ter chegado à
minha beira, um daqueles já experimentados “mestres ratinhos” e ter-me
ordenado: «- Ò chaval, vai além à
Ferramentaria, levantar um martelo de desempenar borracha! E vai num pé e vem
no outro, senão tens que experimentar a densidade da verga de aço nessas
nalgas, que a tenho aqui guardada para os molengões alentejanos...».
Tendo eu, nessa altura, apenas
catorze anitos, pensava já não ser dos mais tolos, e um “martelo de desempenar borracha”, não lembrava ao diabo! Mas, quem
se atrevia a desobedecer nessa época a um “mestre”? E foi assim, com ar
desconfiado mas sem pestanejar, que lá fui em demanda da peculiar ferramenta
de endireitar a borracha. Claro que, ao meu pedido envergonhado, o ferramenteiro, me cravou
um volumoso “embrulho” com mais de
vinte quilos, que lá tinha sempre pronto a entregar aos incultos e novatos na
arte de malhar o ferro.
Sobre a data
desta pequena praxe, já haviam passado mais de dois anos, quando ocorreram os
acontecimentos desse dia 22 de Janeiro de 1974. A cena que relatámos
anteriormente de conflito entre o representante do capital e o jovem proletário
de 16 anos que eu era, repetiu-se nessa manhã, cerca de duas centenas de
vezes. Tantas quanto o número de operários que ali trabalhavam, e que, naquele
dia, por questões de reivindicativa justiça salarial, resolveram não o fazer.
Sendo o pavilhão
secundário como que filho do principal, ali labutavam os proletários admitidos
mais recentemente, os mais novos, quer na empresa quer em idade; ficando o
pavilhão principal para aqueles trabalhadores mais antigos na casa, alguns
deles oriundos da oficina mãe do vão de escada, e que mantinham ainda com o
patronato uma espécie de relação de amizade pelo caminho que haviam percorrido
em comum, quando ainda uns não eram mandantes e, os outros ainda não eram
mandados. Esta premissa viria a influenciar, acentuadamente, todo o desenrolar
dos acontecimentos daquele dia.
Não admira pois
que no pavilhão secundário, o primeiro a ser inquirido pela eminência patronal,
sobre se queriam ou não trabalhar, a negação de iniciar labuta pelos abordados, tenha tido uma adesão praticamente total; já no denominado pavilhão principal,
sem que no secundário se percebesse porquê e, perante a pergunta do
engenhocas, a resposta mais frequente foi, em vez do esperado não, ter-se
começado a ouvir, com alguma frequência e intensidade, as rebarbadoras a chiar
e os martelos a castigar o ferroso metal.
Estava assim encetado o princípio estratégico de dividir para reinar, e a partir dali, as “formigas” que haviam abandonado a caverna, teriam de lutar por si. Embora, se viessem a sair vitoriosas, os provimentos seriam para todo o formigueiro. O costume!
Estava assim encetado o princípio estratégico de dividir para reinar, e a partir dali, as “formigas” que haviam abandonado a caverna, teriam de lutar por si. Embora, se viessem a sair vitoriosas, os provimentos seriam para todo o formigueiro. O costume!
Foi assim que,
enquanto metade daqueles que haviam iniciado a peleja já ajustavam moldes nas
chapas, faziam deslizar com maestria o punção ou escopro batidos pelo martelo,
riscavam com o traçador de ponta de diamante, serravam bocados de ferro, com as
guilhotinas, cortavam as chapas com violência, assentavam esqueletos de
longarinas e pivôs nos gabaritos, soldavam a eléctrodo incandescente tirantes e
degraus, ensaiavam lanças e contra-lanças, faziam rolar as calandras e tornos
mecânicos, apertavam grampos, moldavam curvas nas bigornas, desempenavam
cantoneiras, empilhavam vigas, faziam expirar os foles das forjas, acendiam
maçaricos de oxigénio e gás metano, faziam furos de berbequim, rebarbavam
chanfres para soldaduras, acertavam esquadrias, faziam deslizar pontes
rolantes, ou experimentavam croquis...
Nós, aqueles que tinham recebido e acatado a ordem de expulsão senhorial, deparámo-nos, subitamente, num grupo com cerca de uma apenas uma centena de embotados à porta de entrada do pavilhão secundário, esperando o regresso do soberano engenheiro, dispostos a tudo, para tentarmos em grupo, aquilo que não havíamos logrado individualmente.
Nós, aqueles que tinham recebido e acatado a ordem de expulsão senhorial, deparámo-nos, subitamente, num grupo com cerca de uma apenas uma centena de embotados à porta de entrada do pavilhão secundário, esperando o regresso do soberano engenheiro, dispostos a tudo, para tentarmos em grupo, aquilo que não havíamos logrado individualmente.
Neves da Silva,
não se fez esperar muito. Mesmo que nos quisesse fugir, aquela que era a porta
de entrada, também era a única porta de saída e, janelas se existiam, ficavam
demasiado altas para serem escaladas por sua excelência. Mostrando alguma
coragem, aproximou-se do hostil grupo de 100 enferrujados que, rapidamente, o
rodearam, e uma conversação estranhamente pacífica e respeitosa iniciou-se:
Nós: alegando da necessidade do aumento salarial para fazer face ao aumento do
custo de vida; ele: contra-argumentando tal impossibilidade, com a finalidade
de manter a empresa viável. O trivial nestas coisas.
De considerando
em considerando, de fundamento em fundamento, num diálogo de negociação de
surdos, e sem que qualquer das partes mostrasse vontade de ceder, passadas que
foram duas horas a malhar ferro de língua,
a entidade patronal lá anuiu a que os enferrujados poderiam voltar no próximo
dia aos seus postos de trabalho, se assim o quisessem, pois ele acedia a anular
a ordem de despedimento. Quanto à reivindicação de aumento salarial? Essa, nem
em Maio como vinha sendo tradição, quanto mais em Janeiro. Sentença de patrão!
Não proliferava
por essa época a comunicação social marialva e de papagaios de hoje, senão não
faltariam comentários e declarações obstinadas, sobretudos para as televisões,
de cada uma das partes a clamar por vitória, argumentado os representantes de
uns:
“... que tinha este processo de luta
reivindicativa sido um êxito, pois havia-se conseguido uma adesão em números da
paralisação de cem por cento por parte dos trabalhadores, que apesar de metade
deles terem chegado a ser despedidos, o patronato teve que ceder e proceder à
sua reintegração imediata, isto para além de ter sido um acto heróico,
possivelmente até histórico, isto de fazer uma greve num regime totalitário que
a proibia e, logo, o governo, como sempre ao lado do capital, também havia
saído derrotado e, quem sabe, até ferido de morte”;
E pela outra
parte, não deixaria de aparecer o Sr. Engenheiro acompanhado, certamente, por
três ou quatro capangas de gabardina cinzenta, que aliás o acompanharam sempre
durante a sua deambulação pelos pavilhões fabris, defendendo que:
“...mais uma vez a inegável responsabilidade
desta administração, apoiada sempre por suas excelências as autoridades
corporativas em representação do patriótico governo da nação, haviam levado a
bom porto, e debelado mais uma pequena rebelião, em que, não mais de meia dúzia
de trabalhadores metalúrgicos, certamente mal aconselhados, ou mesmo
manipulados por forças ocultas, quiçá estrangeiras, contrárias aos reais
interesses da nação portuguesa, e adversas à pacífica convivência existente entre
patrões e seus empregados tão imbuídos no desenvolvimento do país no difícil
momento que atravessamos face à difícil conjuntura externa, etc., etc.,
etc....”
Em conclusão: “lançados os foguetes, feitas as festas,
alguém terá sempre de apanhar as canas”; ou ainda, mais apropriado para
este caso, “depois de levantada a mesa,
sempre alguém fica com as barbas untadas”. E foi o que veio acontecer.
Apesar de no dia
seguinte todos termos voltado ao trabalho, uns mais envergonhados, outros
menos, não podíamos ignorar que em termos de resultados, exceptuando a perda da
produção de um dia de malhar no ferro por parte do patronato, os grandes
perdedores do feito épico, haviam sido como de costume, os trabalhadores, que
não viram concretizadas nenhuma das suas reivindicações, salvo o facto de,
metade deles gozar o privilégio de terem passado três quartéis do vigésimo
segundo dia do mês de Janeiro, do ano da revolução dos cravos de verga direita,
que é o mesmo que dizer sem vergar a mola.
Nos quinze dias
subsequentes nada aconteceu, e tudo parecia navegar num mar de rosas entre
aquelas oito paredes. No entanto, as consequências tardias desta aventura não
se fizeram esperar, já que, rapidamente, se concluiu que as tais figuras
funestas de gabardina bege ou cinzenta, não tinham andado por ali apenas para
se inteirarem do estado da arte de malhar no ferro, ou a medir os decibéis
dessa acção que tanto agrediam as expostas membranas timpânicas! Assim, e quase
todas as manhãs seguintes, e, sucessivamente, lá dávamos pela falta de mais um
dos nossos! E, de sussurro em sussurro, lá se passava a notícia: “ a pide foi buscá-lo a casa esta noite e
levaram-no para Caxias! Parece que pertencia ao partido dos comunistas e que
esteve na génese da paralisação do outro dia. ”
Assim, em cada
noite que chegava, eu, esperava a minha vez. Apesar de não ter qualquer ligação
a esse tal partido, ou qualquer
outro, bem sabia que, apesar da minha tenra idade, tinha sido um dos mais
activos argumentistas na revolta dos enferrujados.
Ditosamente, a
madrugada de 25 de Abril ocorreu, e, sem que eu soubesse porquê, a minha vez de
passar umas “férias” na casa junto praia
do cagalhão nunca chegou!
Por tudo isto, o dia 22 de Janeiro ficou
gravado na minha memória.
2 comentários:
Fazer greve antes do 25 de Abril era de facto um acto de coragem.
Um abraço
E tantas outras greves aconteceram desde 1926... até à madrugada de Abril. E tantas vitórias conseguidas!
E tantas greves serão feitas até que Abril retorne. A liberdade, a democracia, o pão e a paz, a educação e a saúde, a dignidade dos portugueses voltarão a ser conquistadas aos 'porcos'. As lutas serão muitas e contínuas até esse dia. Greves incluídas. Houve tantos rapazinhos como tu nos 48 anos de mediocridade! Há hoje tantos como esses. E estão aí, também, a fazer greves e a lutar por algo que para ti, agora, não vale a pena, 'porque isso nunca resolveu nada, nem vai resolver agora'. Mas vai camarada; isto vai.
Um abraço
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