sexta-feira, 14 de junho de 2013

Em memória de meu pai

 7 anos depois....

Janeiro é por natureza um mês feio para os urbanos por causa da chuva. Mas um mês fundamental para aqueles que vivem nos campos, e que ainda sabem avaliar os favores do tempo. Não nos dias que correm, onde as chuvas já pouco importam, mesmo aos rústicos, pois como todos sabemos, o cultivo já teve melhores dias, pelo menos neste país de sol e praia. No entanto, sempre que ocorre um inverno mais seco e uma primavera um pouco solarenga, quando chega o estio, e nos vemos ameaçados com a amofinação de não nos podermos banhar diariamente à grande e à francesa, lá se lembram, os das cidades, que talvez não tivesse sido boa ideia terem andado a exaltar, que tinha sido bom, o tempo do inverno, só porque não choveu.

Não foi o caso deste ano de 1920, pois que, dos quinze dias que este primeiro mês já leva decorridos, ainda não parou de diluviar. Até parece, que o poder divino se esqueceu de que há pobres que precisam de ganhar o sustento e, que não têm uma seara nas costas, que pouco têm com que se cobrir, a não ser, o colmo dos seus casebres à noite, e a copa de alguma árvore durante o dia.

Acordou Teresa, mulher do moleiro, um pouco enjoada, não sabendo se, por noite mal dormida, ou porque terá chegado o dia de parir o ser, que em si vem gerando há cerca de nove meses.

Chico, assim se chamava o moleiro do Pego Ferreiro, havia chegado a casa, quando já anoitecia, e depois de mais um dia de freguesia, na distribuição dos talêgos de farinha, pelos muitos fregueses por onde haviam passado duas semanas antes a recolher o grão, que lhe dera origem. Como de costume, chegava montado na sua mula preferida, que sabia o caminho de sua casa de cor, trazendo em fila indiana, uns presos aos outros, a sua vasta frota de tires muares. E também, como era hábito, era elevada a taxa de alcoolemia que circulava nas suas veias e artérias. Proveito do seu bom trato com muitos dos amigos fregueses, que se orgulhava de ter, e que brindavam a Baco, o milagre da transformação do grão em farinha.

Tivessem as autoridades daquela época, efectuado uma daquelas operações de fiscalização e propaganda, tão na moda nos tempos de hoje e, certamente, o moleiro teria que recorrer aos préstimos dos confrades de então, de seu vindouro bisneto Mário, senão quisesse ver a sua concessão de condução de muares confiscada, para além da elevada coima que lhe assentariam, que lhe custariam algumas maquias cobradas aos seus fregueses.

Sempre o vinho teve nomeada de tornar as pessoas mais inconscientes e belicosas, sobretudo se ingerido em quantidades exageradas, mas não era esse o efeito produzido com o moleiro Chico Bugalhão. Pois, parecia, que quanto mais bebia, mais os seus humores pareciam benfeitorizar. Só que Teresa, como quase todas as mulheres, sobretudo, se de esposas se tratar, é que parecia não estar pelos ajustes. E ainda, o moleiro não se havia apeado do seu anjo muar, e já ela irrompia em desmedido pranto, maldizendo e amaldiçoando o precioso néctar, e desejando que este já se tivesse esgotado! Ao que o moleiro respondia: eu bem tento, Teresa, mas tu não me ajudas! Mas em simultâneo, talvez guiada por inspiração religiosa matrimonial, lá o ia amparando até junto do lume que sempre crepitava na chaminé, para que este pudesse enxugar, em próprio corpo, a roupa ensopada da rega que tinha apanhado.

Enquanto Teresa e a filha mais velha Joaquina, procediam à acomodação da frota dos tires muares nas respectivas quadras, e ainda mal o moleiro se havia acomodado junto ao lume, já as suas duas filhas mais novas, Marizei e, Genoveva a quem chamavam Conceição, se lhe atiravam para o colo, pois já sabiam que aquele serão seria longo e de muitas histórias e cantilenas.

Sabemos hoje que muitas das estórias e cantilenas infantis, mais não são que uma maneira graciosa de nos moldar social e culturalmente e, não raras as vezes, se profere que são verdadeiras e ardis estratégias de instrução sexual. Assim se diz do capuchinho vermelho, da gata borralheira, da branca de neve e sete anões, da carochinha e de outras agora mais hodiernas. Não podemos, no entanto, extrapolar se seria essa a reflexão pedagógica do moleiro Bugalhão.

O facto é que quando Teresa, a mãe, e Joaquina, a filha, se preparavam para entrar em casa, depois de cumprida a sua missão de arrumadoras, e sem que lhes tivessem dado qualquer gorjeta, puderam ainda ouvir o final da cantilena com que o moleiro mimoseava as filhas mais novas: “…encontrei maria a cagar / p´ra cima de uma travessa / botêi-lhe a capa p´ra cima / maria, caga depressa”! Ficou Joaquina mais escarlate que o rubro do pendão português, então recentemente criado, e Teresa à beira daquilo a que futuramente se chamaria, uma grande carga de nervos!

Tal foi o baque sofrido por Teresa, ao ouvir tal linguajar para as duas inocentes, que desatou novamente no carpido interrompido e, vociferando contra a sua desditosa vida lá ia sussurrando “este homem desgraça-se a ele, e a mim, que não me leva o Senhor, deste mundo, etc., etc.…”

Levou Chico algum tempo a reagir ao aranzel da mulher. Mas, esta última oração parecia-lhe cair mesmo a propósito. Levantou-se pesadamente, pousando Marizei com todo o afecto sobre o banco em que antes se encontrava sentado, e dirigindo-se à mulher pegou nela ao colo embaraçada e, cambaleando e tropeçando, dirigiu-se para o quarto contíguo, deitando-a sobre a tosca coberta que cobria a enxerga. Depois, calmamente, dirigiu-se à mesa da sala, onde jaziam dois redentores em poses de via-sacra e, pegando-lhes com o apreço divino, que tais estaturas mereciam, foi colocá-los, um de cada lado da mulher, verbalizando, “vá lá Teresa, com qual queres ir, com este, ou com aquele?

À entrada da porta do quarto, Joaquina já uma mulherzinha e as duas petizas, riam às gargalhadas. Viu-se a mulher do moleiro naqueles preparos, e ante tal cena, sem se saber muito bem porquê, desatou também a rir…e, de repente, sentiu uma dor intensa, como se algo se lhe arrancasse interiormente. Depois dessa, outras se seguiram, cada vez mais violentas.

Não cantarolava, já agora, o moleiro. Num impulso tinha pegado nos dois Cristos e sem saber muito bem o que fazer, como sempre acontece aos homens nestas situações, andava de cá para lá, com os ditos nas mãos, talvez, quem sabe, suplicando por uma boa hora. Valeu-lhe a chegada de sua mãe, Teresa Gonçalves, chamada com urgência por Joaquina. Sempre as mães nos chegam nas horas certas e de apoquentação, sobretudo àqueles, que ainda têm a ventura de as ter.

Pouco faltava para a meia-noite, quando a avó Teresa, conseguiu retirar com vida, das entranhas de sua nora, o segundo filho varão do casal de moleiros, que seria, afinal, o único, pois o primeiro havia falecido de lua entripal, e, a partir daí, só germinariam filhas.

Há horas de sorte na vida, tal como foi o caso da natividade desta criança, o ter nascido viva e sem deixar sequelas em sua ascendente, numa época em que a mortandade infantil e materna, não era aquilo que é hoje, pois quase sempre, o balanço entre vivos e mortos, quase se igualava a zero. Teve sorte este moço, ao nascer vivo e valente, para as noites de geada e maresia que iria passar no futuro ao relento, certamente, influenciado pelas práticas de preparação para o parto usadas por seu pai. Ou talvez, quem sabe, devido a alguma jura feita aos redentores, na hora da aflição.

Está agora ao colo de sua avó Teresa Gonçalves, mulher fumadora e boémia, e de quem se diz frequentadora de tascas e tabernas da época, para copos e jogos a dinheiro com competidores masculinos, e, onde seu marido, de nome José Bugalhão, levava os filhos de ambos, para que ali mesmo os aleitasse. Pode por agora o recém-nascido, usufruir desse colo septuagenário e, simultaneamente, da primeira cantilena que esta lhe vai cantando: “…ai pirroli, pirroli, pirroli / ai pirroli, pirroli, pirrolé / se não queres chocolate, nem aguardente/ bebes café...”.


Um mês após este nascimento, e aquando de mais uma distribuição de farinha pela freguesia, apresentar-se-á, o moleiro, no registo civil de Santo António das Areias, dizendo que lhe nasceu um filho e que se chamará Manuel…

3 comentários:

Helena Barreta disse...

Ao ler ia vendo as semelhanças com a história do meu pai que, tal como o seu, nasceu em casa, na aldeia da Escusa em 1925.

Bom fim de semana

Um abraço

João, disse...

Maria Pimenta disse:

Maravilhoso. Já conhecia a descrição, e cada vez se torna mais " saborosa" a sua leitura. No que toca ao canto, verificamos a originalidade do poema, com marca "Bugalhonica". Gostei.

João, disse...

Maria Assunção Ribeiro disse:

Gostei muito. Esta cronica fez-me viajar no tempo e uma pergunta se colocou na minha cabeça: Será que é desta família Bugalhão que a minha avó M José descendia? Não sei e nunca saberei. Só sei que uma tia Joaquina Bugalhão moradora na Portagem um dia me tratou por minha sobrinha. Foi no passado, eu era criança, não liguei e agora é tarde. O que aconteceu com os progenitores da minha avó não sei. É pena. Parabéns