7 anos depois....
Janeiro é por
natureza um mês feio para os urbanos por causa da chuva. Mas um mês fundamental
para aqueles que vivem nos campos, e que ainda sabem avaliar os favores do
tempo. Não nos dias que correm, onde as chuvas já pouco importam, mesmo aos
rústicos, pois como todos sabemos, o cultivo já teve melhores dias, pelo menos
neste país de sol e praia. No entanto, sempre que ocorre um inverno mais seco e
uma primavera um pouco solarenga, quando chega o estio, e nos vemos ameaçados
com a amofinação de não nos podermos banhar diariamente à grande e à francesa,
lá se lembram, os das cidades, que talvez não tivesse sido boa ideia terem
andado a exaltar, que tinha sido bom, o tempo do inverno, só porque não choveu.
Não foi o caso
deste ano de 1920, pois que, dos quinze dias que este primeiro mês já leva
decorridos, ainda não parou de diluviar. Até parece, que o poder divino se
esqueceu de que há pobres que precisam de ganhar o sustento e, que não têm uma
seara nas costas, que pouco têm com que se cobrir, a não ser, o colmo dos seus
casebres à noite, e a copa de alguma árvore durante o dia.
Acordou Teresa,
mulher do moleiro, um pouco enjoada, não sabendo se, por noite mal dormida, ou
porque terá chegado o dia de parir o ser, que em si vem gerando há cerca de
nove meses.
Chico, assim se
chamava o moleiro do Pego Ferreiro, havia chegado a casa, quando já anoitecia,
e depois de mais um dia de freguesia, na distribuição dos talêgos de farinha,
pelos muitos fregueses por onde haviam passado duas semanas antes a recolher o
grão, que lhe dera origem. Como de costume, chegava montado na sua mula
preferida, que sabia o caminho de sua casa de cor, trazendo em fila indiana,
uns presos aos outros, a sua vasta frota de tires muares. E também, como era
hábito, era elevada a taxa de alcoolemia que circulava nas suas veias e
artérias. Proveito do seu bom trato com muitos dos amigos fregueses, que se
orgulhava de ter, e que brindavam a Baco, o milagre da transformação do grão em
farinha.
Tivessem as
autoridades daquela época, efectuado uma daquelas operações de fiscalização e
propaganda, tão na moda nos tempos de hoje e, certamente, o moleiro teria que
recorrer aos préstimos dos confrades de então, de seu vindouro bisneto Mário,
senão quisesse ver a sua concessão de condução de muares confiscada, para além
da elevada coima que lhe assentariam, que lhe custariam algumas maquias
cobradas aos seus fregueses.
Sempre o vinho
teve nomeada de tornar as pessoas mais inconscientes e belicosas, sobretudo se
ingerido em quantidades exageradas, mas não era esse o efeito produzido com o
moleiro Chico Bugalhão. Pois, parecia, que quanto mais bebia, mais os seus
humores pareciam benfeitorizar. Só que Teresa, como quase todas as mulheres,
sobretudo, se de esposas se tratar, é que parecia não estar pelos ajustes. E
ainda, o moleiro não se havia apeado do seu anjo muar, e já ela irrompia em
desmedido pranto, maldizendo e amaldiçoando o precioso néctar, e desejando que
este já se tivesse esgotado! Ao que o moleiro respondia: eu bem tento, Teresa,
mas tu não me ajudas! Mas em simultâneo, talvez guiada por inspiração religiosa
matrimonial, lá o ia amparando até junto do lume que sempre crepitava na
chaminé, para que este pudesse enxugar, em próprio corpo, a roupa ensopada da
rega que tinha apanhado.
Enquanto Teresa
e a filha mais velha Joaquina, procediam à acomodação da frota dos tires muares
nas respectivas quadras, e ainda mal o moleiro se havia acomodado junto ao
lume, já as suas duas filhas mais novas, Marizei e, Genoveva a quem chamavam
Conceição, se lhe atiravam para o colo, pois já sabiam que aquele serão seria
longo e de muitas histórias e cantilenas.
Sabemos hoje que
muitas das estórias e cantilenas infantis, mais não são que uma maneira
graciosa de nos moldar social e culturalmente e, não raras as vezes, se profere
que são verdadeiras e ardis estratégias de instrução sexual. Assim se diz do
capuchinho vermelho, da gata borralheira, da branca de neve e sete anões, da
carochinha e de outras agora mais hodiernas. Não podemos, no entanto,
extrapolar se seria essa a reflexão pedagógica do moleiro Bugalhão.
O facto é que
quando Teresa, a mãe, e Joaquina, a filha, se preparavam para entrar em casa,
depois de cumprida a sua missão de arrumadoras, e sem que lhes tivessem dado
qualquer gorjeta, puderam ainda ouvir o final da cantilena com que o moleiro
mimoseava as filhas mais novas: “…encontrei
maria a cagar / p´ra cima de uma travessa / botêi-lhe a capa p´ra cima / maria,
caga depressa”! Ficou Joaquina mais escarlate que o rubro do pendão
português, então recentemente criado, e Teresa à beira daquilo a que
futuramente se chamaria, uma grande carga de nervos!
Tal foi o baque
sofrido por Teresa, ao ouvir tal linguajar para as duas inocentes, que desatou
novamente no carpido interrompido e, vociferando contra a sua desditosa vida lá
ia sussurrando “este homem desgraça-se a
ele, e a mim, que não me leva o Senhor, deste mundo, etc., etc.…”
Levou Chico
algum tempo a reagir ao aranzel da mulher. Mas, esta última oração parecia-lhe
cair mesmo a propósito. Levantou-se pesadamente, pousando Marizei com todo o
afecto sobre o banco em que antes se encontrava sentado, e dirigindo-se à
mulher pegou nela ao colo embaraçada e, cambaleando e tropeçando, dirigiu-se
para o quarto contíguo, deitando-a sobre a tosca coberta que cobria a enxerga. Depois,
calmamente, dirigiu-se à mesa da sala, onde jaziam dois redentores em poses de
via-sacra e, pegando-lhes com o apreço divino, que tais estaturas mereciam, foi
colocá-los, um de cada lado da mulher, verbalizando, “vá lá Teresa, com qual queres ir, com este, ou com aquele?
À entrada da
porta do quarto, Joaquina já uma mulherzinha e as duas petizas, riam às
gargalhadas. Viu-se a mulher do moleiro naqueles preparos, e ante tal cena, sem
se saber muito bem porquê, desatou também a rir…e, de repente, sentiu uma dor
intensa, como se algo se lhe arrancasse interiormente. Depois dessa, outras se
seguiram, cada vez mais violentas.
Não cantarolava,
já agora, o moleiro. Num impulso tinha pegado nos dois Cristos e sem saber
muito bem o que fazer, como sempre acontece aos homens nestas situações, andava
de cá para lá, com os ditos nas mãos, talvez, quem sabe, suplicando por uma boa
hora. Valeu-lhe a chegada de sua mãe, Teresa Gonçalves, chamada com urgência
por Joaquina. Sempre as mães nos chegam nas horas certas e de apoquentação,
sobretudo àqueles, que ainda têm a ventura de as ter.
Pouco faltava
para a meia-noite, quando a avó Teresa, conseguiu retirar com vida, das
entranhas de sua nora, o segundo filho varão do casal de moleiros, que seria,
afinal, o único, pois o primeiro havia falecido de lua entripal, e, a partir daí, só germinariam filhas.
Há horas de
sorte na vida, tal como foi o caso da natividade desta criança, o ter nascido
viva e sem deixar sequelas em sua ascendente, numa época em que a mortandade
infantil e materna, não era aquilo que é hoje, pois quase sempre, o balanço
entre vivos e mortos, quase se igualava a zero. Teve sorte este moço, ao nascer
vivo e valente, para as noites de geada e maresia que iria passar no futuro ao
relento, certamente, influenciado pelas práticas de preparação para o parto
usadas por seu pai. Ou talvez, quem sabe, devido a alguma jura feita aos
redentores, na hora da aflição.
Está agora ao
colo de sua avó Teresa Gonçalves, mulher fumadora e boémia, e de quem se diz
frequentadora de tascas e tabernas da época, para copos e jogos a dinheiro com
competidores masculinos, e, onde seu marido, de nome José Bugalhão, levava os
filhos de ambos, para que ali mesmo os aleitasse. Pode por agora o
recém-nascido, usufruir desse colo septuagenário e, simultaneamente, da
primeira cantilena que esta lhe vai cantando: “…ai pirroli, pirroli, pirroli / ai pirroli, pirroli, pirrolé / se não
queres chocolate, nem aguardente/ bebes café...”.
Um mês após este
nascimento, e aquando de mais uma distribuição de farinha pela freguesia,
apresentar-se-á, o moleiro, no registo civil de Santo António das Areias,
dizendo que lhe nasceu um filho e que se chamará Manuel…