Não lia um livro
numa semana desde os meus 20 anos, quando por essa época, há luz de um
candeeiro a petróleo, e após um acidente de motorizada que me partiu um pé, devorei o
Mandingo de Kyle Onstott. O Mandingo era uma história passada nos States, tratava
da escravatura dos pretos nessas paragens, numa plantação do Alabama, onde o
“avantajado” escravo Ganimedes acaba cozido e assado (qual joão ratão) num
panelão, após ter ele mesmo “comido” a filha branca do patrão. Um argumento
perfeito para apaixonar um jovem, então de esquerda, e o acicatar na sua raiva aos
americanos imperialistas.
Pois por estes
dias, bati esse recorde, ao ler a “Madrugada Suja” de Miguel Sousa Tavares (MST):
apenas 4 dias.
Quando me
emprestou o livro, logo o amigo Fernando Bonito me avisou, que se tratava de um
argumento que, quando o iniciasse, não conseguiria mais parar! Duvidei, sobretudo,
devido a uma preguiça crónica que me vem acompanhando ultimamente.
Já havia lido do
MST o livro, possivelmente, mais lido em Portugal nos últimos anos - O Equador,
que apesar de ser uma intriga bem montada, com um enquadramento histórico que
me aliciou, e de ter ficado uns tempos a remoer as traições aí relatadas, só me
voltei a lembrar dele quando a TVI apresentou a série correspondente, mas aí, muito
mais focado na belíssima banda sonora de Rodrigo Leão, e nas belas fotografias exibidas: quer as paisagísticas, quer as humanas!
Para um leitor
apaixonado por Saramago, Lobo Antunes, ou José Cardoso Pires, ler Miguel Sousa
Tavares, em termos literários é assim como quem passa da música clássica ou do
“jaaz”, para a chamada música pimba, ou um confronto Camilo/Eça do século XIX. No entanto, cuidado, isso apenas no que
toca a uma análise literária. Porque no resto, em termos de criatividade, de
enredo, de intriga real, de traições, e de actualidade, o Miguel é um “mestre”.
Neste livro ele
pega na vida de várias personagens (possivelmente reais) que atravessaram o século XX
até aos nossos dias, as suas vivências e visões diferentes do tempo e do espaço
onde vivem (o campo e a cidade, o urbano e o rústico, o interior e o litoral), a simplicidade com que
as descreve (sobretudo as femininas, sem ser ter medo de ser acusado de
machista, pois não parece sê-lo), a forma sucinta, clara e global como descreve
os acontecimentos sociais e políticos de quase um século; e como tudo isto conflui para um
problema que ele quer denunciar, com grande actualidade nos nossos dias: as chantagens do poder, a corrupção, e a política num
regime que se diz democrático.
Miguel Sousa
Tavares é daquelas personalidades que, ou se gosta ou se odeia (como eu me
revejo nele). Quem ouve os seus comentários nos meios de comunicação, parece arrogante, vaidoso, distante, e agressivo; mas no fundo eu acho que ele é um
homem simples e sensível, mas com uma opinião própria e independente. Não é habitualmente
um troca-tintas, como a maioria dos seus congéneres comentadores televisivos, que estão ali
apenas para dizerem o que os espectadores querem que se diga: num dia são
brancos no dia seguinte são pretos; mas o que eles são, efectivamente, é
cinzentos, ou pior, "cinzentões"; verdadeiros cata-ventos para agradarem aos seus mandantes e
ganharem a vida à custa da ingenuidade alheia. MST não, o que é branco é branco, se
for preto não trata por “negro”.
Claro que há
quem não goste: é muito agressivo! Ai
credo, satanás. Mas quem quiser conhecer MST, ou terá de ser pessoalmente,
ou nos seus livros onde ele se mostra. E em “Madrugada
Suja”, MST dá forma aos seus heróis: os humildes e os corajosos, e descreve
de uma forma simples mas real, muito do que arruinou Portugal nos últimos 40
anos.
Para quem como
eu, teve oportunidade de viver alguns acontecimentos idênticos aos do livro:
mentiras, traições, chantagens, sacanices, vitórias dos poderes ocultos sobre a
razão, não pude deixar de apreciar esta obra. Quase sempre emocionado e com
lágrimas nos olhos, que frequentemente, me fizeram interromper a leitura (a
coisa às vezes é dura, mas muito real) senão, o recorde de tempo da leitura
ainda seria maior.
Como eu gostava
de ter sido Tomás da Burra: o homem íntegro que nunca saiu de Medronhais, o
homem que nunca viu o mar, que criava, falava e amava as suas plantas e os seus
animais apenas para se servir deles, quando deles precisasse, que criou o seu
neto como de filho se tratasse, mesmo que o não fosse; como eu admirei a
coragem da avó Filomena: mulher sem saber ler ou escrever, mas uma verdadeira
sábia no que toca às relações humanas e a arte de saber calar, uma mulher coragem; como eu gostava de
ser o Filipe: o Arquitecto criado no campo, que não cedeu a chantagens e teve a
coragem de enfrentar o “poder” e a corrupção (nem que os chantagistas fossem os
poderosos, e um dos corruptos fosse o seu próprio pai biológico); como eu
apreciei Eva (ou a Procuradora Maria Rodrigues): que poderia ter perdido tudo numa noite de simples bebedeira de adolescente, mas que lutou durante 5 anos agarrada a numa
cadeira de rodas e, quando podia ter cedido à facilidade de se vingar de um dos
seus possíveis “violadores”, aceitou os seus instintos de “mulher”, e chegou à
verdade.
Mas, o que eu gostava Miguel: era de escrever como tu, mesmo que literatura não fosse! Escrever a “minha” história, e denunciar publicamente a patranha que também um dia me armaram, e que até hoje carrego como algo mal resolvido. Pelo menos nomes das personagens já não me faltam: o Zé Morcego, a Genoveva (a bruxa gorda), a Dona Maria Quixote (a bruxa má), o dr. Camponês, a São Imaculada, o Manuel dos Canchos, O Zé Almirante de Meia-Nau, as Irmãs Tramelita e Catatua, o Chico Regedor, o Frei Macacos, o Maioral das Cortiças, etc., etc. Quem sabe, talvez um dia....
Mas, o que eu gostava Miguel: era de escrever como tu, mesmo que literatura não fosse! Escrever a “minha” história, e denunciar publicamente a patranha que também um dia me armaram, e que até hoje carrego como algo mal resolvido. Pelo menos nomes das personagens já não me faltam: o Zé Morcego, a Genoveva (a bruxa gorda), a Dona Maria Quixote (a bruxa má), o dr. Camponês, a São Imaculada, o Manuel dos Canchos, O Zé Almirante de Meia-Nau, as Irmãs Tramelita e Catatua, o Chico Regedor, o Frei Macacos, o Maioral das Cortiças, etc., etc. Quem sabe, talvez um dia....
Vou agora reler
com mais calma. Talvez para apreciar melhor a escrita e alguns pormenores, que
volto a referir, sem ser uma grande obra literária (na minha modesta opinião),
quem gostar de ler, não perca: “Madrugada
Suja”.
Obrigado ao
Miguel....
3 comentários:
Eu ainda demorei menos, porque tenho muuuuuuuuuuuito tempo livre como sabe.Os livros são o meu café, as minhas saidas e parte do meu mundo. Gostei do que escreveu. Como sempre.
Este foi o último livro que li e demorei dois dias. Excelente livro.
Bom fim de semana
Outro excelente livro do mesmo autor é "Rio das Flores".
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