terça-feira, 29 de abril de 2014

O mundo dos outros...


No rescaldo de mais uma comemoração do 25 de Abril não posso deixar de aqui partilhar este texto fabuloso que tirei daqui:

Desfile comemorativo em 25 de Abril de 2014
por Rui Rocha.


"Freitas do Amaral à direita. Também à frente Mário Soares. Soares a falar sempre de Mário Soares, ainda que pareça falar de outros. O coiso era meu amigo. O tal um democrata. Que passou uns dias em minha casa. E por aí adiante. Um pouco atrás Cavaco, arrastando as botas. Passos Coelho preso ao casaco de Cavaco por uma guita. Vai pronunciando frases vazias. 

Freitas do Amaral ao centro. Passos Coelho dizendo umas coisas sobre a iniciativa privada. Outras em murmúrio sobre o estado social. Um exército de formigas cede logo às primeiras palavras. As formigas retrocedem, desmotivadas. Alegre proclama. Alegre declama. Alegre exclama. Alegre rima: o tiroliro está lá em cima. Jorge Sampaio ouve e toma notas. No próximo discurso dirá o mesmo em mais cinco mil e quatrocentas palavras. O exército de formigas acelera a marcha em sentido contrário. Sócrates tem um cartaz com a fotografia de Sócrates. Pinto Monteiro tem um cartaz com a fotografia de Sócrates.

Freitas do Amaral está agora à esquerda. Já teve um cartaz com a fotografia de Sócrates. Teixeira dos Santos vai lá mais para trás. Tenta contar os participantes no desfile. E falha. Eanes foi convidado mas imperativos morais impedem-no de participar. Relvas está ao telemóvel. Vítor Gaspar ouve Alegre e toma notas. Há-de dizer dois ou três dos versos de Alegre demorando o mesmo tempo que levará Jorge Sampaio a ler o seu discurso. Seguro promete que quando chegarem ao fim da rua farão o percurso inverso. Aliás, indigna-se, deviam ter feito o desfile numa rua paralela.

Freitas do Amaral está agora do seu lado direito. Perdão. Acabou de colocar-se do seu lado esquerdo. O exército de formigas já desapareceu completamente do campo de visão. Passos Coelho tem uma visão. Comprou-a ontem no quiosque. Comprou também a Caras e a Guia do Automóvel. Aguiar Branco vai de braço dado com Poiares Maduro. Otelo cumprimenta a filha de Marcello Caetano com um beijo. Jerónimo de Sousa distribui doces às criancinhas. Ajuda-se com uma bengala de cego. Nunca soube, nunca viu. O Bloco de Esquerda optou por participar na modalidade de 400 metros estafetas. Assim ficam representadas todas as tendências e sensibilidades.

O desfile começou há exactamente quinze minutos. Relvas fechou três negócios e concluiu duas licenciaturas nesse período de tempo. Sócrates concluirá mais uma no próximo Domingo. Marques Mendes prevê chuva. Acerta em cheio.

Freitas do Amaral abriga-se com o guarda-chuva de Vasco Lourenço que desfila em representação do Grande Oriente Lusitano. Perdão. Freitas está agora debaixo do guarda-sol de Eduardo Catroga que desfila em representação de si mesmo. César das Neves vergasta-se enquanto caminha. Mas mantém o sorriso. Compraz-se na mortificação do cilício. Isabel Jonet entrega um quilo de arroz carolino a um professor tornado indigente enquanto diz umas palavras a um repórter. Armando Vara segue às cavalitas de José Lello. Cavaco fala do mar. Soares fala da subida dos oceanos. Nomeadamente daqueles que desaguam à porta de sua casa. Passos Coelho fala de submarinos. Portas de contribuintes, agricultores, militares e pensionistas. Marcelo Rebelo de Sousa fala. Jorge Sampaio discursa.

Freitas do Amaral adapta o discurso enquanto inicia um movimento em diagonal. O bispo que representa a Igreja Católica tem andado sempre atrás dele. Eanes, que por imperativo moral afinal sempre veio, cala. Guterres dialoga. Durão Barroso abandona. Santana Lopes fica. Oliveira e Costa aproveita um momento de distracção do professor indigente e abifa-se com o quilo de arroz carolino que Jonet lhe tinha dado. Desta vez, Armando Vara foi menos veloz. D. Januário é o único que desfila armado. Otelo distribui beijinhos. Jerónimo de Sousa leva uma criancinha às cavalitas. Ricardo Salgado segue com as mãos nos bolsos. A direita no de Passos Coelho. A esquerda no de Seguro. 

O exército de formigas recolheu há muito ao formigueiro."


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