Retirada daqui:
Uma descrição apressada das praxes por que
passei
por António
Manuel Venda
“Dei agora conta de que devo ser a única
pessoa em Portugal que não escreveu sobre as praxes. Andei no ISCTE. Também
apanhei com os filhos da puta logo à porta, no primeiro dia (eu ia do Algarve,
de Monchique, acho que só conhecia vagamente a palavra praxe). Estavam dois
tipos com uma rapariga que tinha pasta de dentes e creme de barbear. Achei
estranho mas avancei para eles. Os dois tipos agarraram-me logo e a rapariga
preparou-se para me encher o rosto e o cabelo com a pasta e o creme.
Concentrei-me apenas num dos que me
agarravam e atirei-o ao chão, e nessa altura senti que tinha sido apanhado na
cara nem sei já se pela pasta se pelo creme. Quando ia para dar um pontapé no
focinho do filho da puta que estava no chão, o outro puxou-me para trás e ele
entretanto levantou-se. Vi as coisas mal paradas para o meu lado, porque eram
dois, havia a rapariga com as bisnagas e estava um terceiro a aproximar-se. Consegui
libertar-me do que me agarrava e procurei na relva da entrada do ISCTE um pau,
algum ramo de árvore, qualquer coisa que me ajudasse a equilibrar aquilo. Mas
nada. Percebi então que o terceiro vinha tentar desapartar, embora pertencesse
ao grupo dos filhos da puta. Lá disse umas coisas aos outros e entraram no
edifício. Eu segui-os e procurei uma casa de banho. Estava envergonhadíssimo
com aquelas merdas na cara, mas a certa altura vi alguns tipos cabisbaixos a
caminharem pelos corredores com bigodes colgate e volumosas cabeleiras brancas.
Acabei por lavar a cara e quando saí nem
passaram cinco minutos que não aparecesse mais um grupo de filhos da puta. Só
tipos, desta vez e um com ar esquisito carregava as bisnagas. Mal os vi
dirigirem-se a mim, apanhei um caixote do lixo e disse-lhes que ia haver ali
merda. Não houve. Os filhos da puta passaram por mim sem fazerem um gesto
ameaçador que fosse, mas um disse-me que eu ficava marcado. Pousei o caixote do
lixo no chão, a conter-me para não lhe dar com ele nos cornos. Era o que me
apetecia fazer. Partir os cornos do filho da puta que tinha dito que eu ficava
marcado. Mas contive-me. E o dia passou, acho que só com uma aula e ainda por
cima falsa, onde um palhaço qualquer a fazer de professor se fartou de
recomendar bibliografia esquisita. Eu ainda cheguei a comprar um dos livros,
antes de descobrir que a aula tinha sido falsa, para nos fazer de parvos. Não
sei se mais alguém comprou.
Depois veio a parte pior, uma aula no
auditório maior, teórica. Mas não era a aula. Era as praxes. Creio que foi um
ou dois dias depois. Não tenho bem a certeza. Os alunos encheram o auditório.
Acho que muitos sabiam que era para as praxes, mas eu, lá das serras do
Algarve, pensei que era uma aula mesmo. Só percebi quando ao procurar um lugar
numa das filas do meio me apareceu pela frente a tal rapariga da pasta de
dentes e do creme de barbear e, sem que eu tivesse tempo de reagir, sacou um
marcador verde do soutien (se é que usava e não o segurava entre as mamas) e
fez-me um risco na cara. Apeteceu-me chamar-lhe cabra, mas não consegui porque
nessa altura tinha a mente ocupada com a surpresa de estar na porcaria nas
praxes e não numa aula teórica. O que poderia fazer? Era isso que eu pensava.
Fui-me sentar num lugar vago na fila em
frente, e pelo caminho reparei, que a cabra já riscava outro rapaz depois de
sacar o marcador, que escondeu logo a seguir. Pensei que deveria chegar a casa
com as mamas todas verdes, porque parecia nem ter tampa no marcador. A cabra
das mamas verdes. Podia haver quem gostasse. Pensei em Monchique, a minha
terra. O Karaté das Estevas, se a encontrasse assim, de certeza que lhe chamava
um figo. E o Renhaufe a mesma coisa. Já o Zé das Cabras talvez ficasse
impressionado e fugisse dela. Não sei. Devo ter pensado em mais coisas.
Estava a escrever notas como estas num
pequeno bloco, para tentar passar despercebido, mas de repente aquela merda
começou. Entraram lá os que mandavam naquilo, inclusive os dois filhos da puta
que me tinham recebido à porta no primeiro dia. Claro que fui um dos escolhidos
pata ir fazer figura de parvo. Chamaram-me logo mais um grupo de cinco ou seis.
Pensei que era por ter a marca na cara e que devia ter tentado tirá-la com
cuspo. Mas não. Eles reconheciam-me mesmo sem a marca. Havia uns do grupo que
não estavam marcados. Por isso lá fui. Ia decidido a não armar problemas no
meio daquela assistência toda, onde percebi que estavam alguns professores,
pela idade que aparentavam.
Aquilo era completamente estúpido e nalguns
casos, para mim, humilhante. Mas calhou-me uma coisa fácil: ir para cima de uma
cadeira, descalço (convém não ir para aquela merda com buracos nas meias), em
frente a outro desgraçado nas mesmas condições e imitar um galo (fingir bater
as asas com os braços e gritar có có ró có có). Fizemos os dois uma figura
triste durante trinta segundos, mas não dava para desatar ali à porrada no meio
do que parecia ser uma festa académica que até metia professores. Puta que os
pariu também!
Regressei ao meu lugar, descalço, e só aí é
que calcei as meias e as botas. Ainda havia quem se risse de mim. Decidi
ignorar. Achei que já não me iam chatear mais. E a verdade é que não me
chatearam. Mas os outros do grupo tiveram provas mesmo piores, pelo menos
seriam piores para mim (por exemplo, ficar em cuecas, vestir uma saia
transparente e dançar, o mais próximo que conseguissem do ballet. Parvoíces e
mais parvoíces, com um auditório cheio a rir, inclusive os caloiros que não
tinham sido escolhidos, a maioria, aliás.
Depois houve a eleição da miss caloira e nos
dois primeiros lugares ficaram duas raparigas que depois descobri que calharam
na minha turma. Essa parte não foi muito puxada para elas, não precisaram de se
despir, mas para as avaliações tiveram de se pôr um bocado a jeito dos filhos
da puta que iam conduzindo a festa. E foi assim, uma coisa soft, sem mortos nem
feridos, mas eu não gostei.
E ainda me lembro dos filhos da puta da
organização. Puta que os pariu! Devem gerir empresas por aí. O curso era de
gestão. Ou estão desempregados. Ou emigraram. Ou algum já morreu. Eu sei lá...,
Nunca gostei de merdas daquelas. Mas depois, com o passar dos anos, comecei a
ver merdas piores, bem piores. E a saber de mortes. Tenho de reconhecer que
aquilo da pasta de dentes e do creme de barbear se calhar nem merecia que se
atirasse com um tipo ao chão. Mas se o tempo voltasse para trás eu agora ia
esforçar-me mais para acertar mesmo com um pontapé no focinho do filho da puta
que atirei ao chão. Foi uma semana daquela merda.
Mais tarde colegas meus, de Lisboa,
disseram-me que já sabiam daquilo e que por isso não tinham aparecido nas aulas
na primeira semana. Eu sabia lá... Eu tinha chegado de Monchique. Sabia tanto
de praxes como o Karaté das Estevas, o tal que não haveria de deitar fora uma a
cabra das mamas verdes. Por isso lá andei a semana inteira, a defender-me
quando achava que era demais (bigodes de pasta de dentes, f***-se, nem que
fosse preciso haver porrada...). Outras coisas deixei.
Outra cabra pintou-me a cara com giz. Andava
sempre de giz na mão e acho que não usava soutien (pelo menos não tinha mamas).
Era tão feia, tão feia mas mesmo tão feia que eu fiquei feito parvo a olhar
para ela a tentar perceber se usava uma máscara ou se era mesmo assim. E
entretanto ela pintou-me a cara de branco. Como tinha pintado tantos por ali,
nem me preocupei em ir logo lavar a cara. Fui daí a bocado, antes de regressar
a casa. A cabra feia parecia impressionar os caloiros. Deixavam-se pintar, de
olhos fixados nela, incrédulos com o que viam. Cheguei a pensar que era uma
bruxa, mas depois acabei por vê-la andar por lá com o saco dos livros e dos
cadernos.
As raparigas das praxes eram quase todas
feias, mas aquela distinguia-se. Já os tipos, o que os distinguia, era a
tendência para a ordinarice e para manifestarem uma certa superioridade, e também
o facto de andarem em grupo, não se desse o caso de terem de levar nos cornos.
Terminou tudo ao fim de uma semana. Com mais uma aula teórica inventada no
auditório maior. Aos poucos os caloiros tinham perdido o medo daquilo e já
estavam por tudo.
O auditório encheu outra vez. E os mesmos
tipos das praxes lá apareceram a conduzir a festa. A cabra das mamas verdes,
dessa vez, nem a vi. A bruxa do giz branco a mesma coisa. Eu tinha-as posto as
duas a caminho de Monchique numa das minhas histórias, a das mamas verdes para
ser apanhada pelo Karaté das Estevas, a sem mamas para ficar a cargo do
Renhaufe, ou talvez do Jacaréu, ou na volta para fazer o jeito ao Sapo dos
Montes Claros. Se calhar foi por isso que não as vi, ou que não reparei nelas.
Estavam na história e estavam muito bem. E a julgar pelo que eu sabia do Karaté
das Estevas, do Renhaufe, do Jacaréu e do Sapo dos Montes Claros estavam bem
fo*****. Aquelas duas cabras...
Fui-me sentar numa das últimas filas do
auditório. Pensei que estaria mais a salvo do que pudesse acontecer. Mas a
festa, afinal, era diferente. Os tipos queriam dar-nos uma espécie de lição de
participação cívica, umas tretas, política, sei lá o que mais. Já se entrava na
fase da seriedade. Já devíamos estar integrados na cultura académica. Pelo
menos foi o que pensei que os filhos da puta pensavam. Senti-me tranquilo.
Larguei o bloco onde escrevia e tomei atenção. O que seria que tinham
preparado?
Muitos como eu fariam esta pergunta. Que
teve respostas nem cinco minutos depois. Um dos filhos da puta, que usava um
bigodinho parvo à Hitler só que castanho mais baixo e mais largo (enfim, com
tantas diferenças nem seria um bigode à Hitler, mas também não era nenhum
bigode à Clark Gable...), esse tipo apresentou um orador. Era um colega nosso,
que estava lá matriculado havia já algum tempo mas que ao que percebi ainda se
mantinha no primeiro ano. Foi a única vez que o vi lá.
Apresentou-o como um promissor líder
político. Isto vai para trinta anos. Era de uma juventude de um partido, a socialista.
Nada retive do que nos disse durante já não sei quanto tempo. Foi apresentado
como António José Seguro. Para mim
foi como se tivessem dito que era o Manuel Francisco da Silva. Ou o Karaté dos
Montes Claros. Ou o Jacaréu Renhaufe das Estevas. Não o conhecia de lado
nenhum. Nem fiquei a conhecer. Mais tarde é que ouvi falar dele, cada vez mais!”
Ah ganda Tonho, quem escreve assim não é gago. Eu, no seu lugar, faria o mesmo.
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