segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Esta é muita forte! Mas merece ser replicada...


Retirada daqui:

Uma descrição apressada das praxes por que passei
por António Manuel Venda

“Dei agora conta de que devo ser a única pessoa em Portugal que não escreveu sobre as praxes. Andei no ISCTE. Também apanhei com os filhos da puta logo à porta, no primeiro dia (eu ia do Algarve, de Monchique, acho que só conhecia vagamente a palavra praxe). Estavam dois tipos com uma rapariga que tinha pasta de dentes e creme de barbear. Achei estranho mas avancei para eles. Os dois tipos agarraram-me logo e a rapariga preparou-se para me encher o rosto e o cabelo com a pasta e o creme.

Concentrei-me apenas num dos que me agarravam e atirei-o ao chão, e nessa altura senti que tinha sido apanhado na cara nem sei já se pela pasta se pelo creme. Quando ia para dar um pontapé no focinho do filho da puta que estava no chão, o outro puxou-me para trás e ele entretanto levantou-se. Vi as coisas mal paradas para o meu lado, porque eram dois, havia a rapariga com as bisnagas e estava um terceiro a aproximar-se. Consegui libertar-me do que me agarrava e procurei na relva da entrada do ISCTE um pau, algum ramo de árvore, qualquer coisa que me ajudasse a equilibrar aquilo. Mas nada. Percebi então que o terceiro vinha tentar desapartar, embora pertencesse ao grupo dos filhos da puta. Lá disse umas coisas aos outros e entraram no edifício. Eu segui-os e procurei uma casa de banho. Estava envergonhadíssimo com aquelas merdas na cara, mas a certa altura vi alguns tipos cabisbaixos a caminharem pelos corredores com bigodes colgate e volumosas cabeleiras brancas.

Acabei por lavar a cara e quando saí nem passaram cinco minutos que não aparecesse mais um grupo de filhos da puta. Só tipos, desta vez e um com ar esquisito carregava as bisnagas. Mal os vi dirigirem-se a mim, apanhei um caixote do lixo e disse-lhes que ia haver ali merda. Não houve. Os filhos da puta passaram por mim sem fazerem um gesto ameaçador que fosse, mas um disse-me que eu ficava marcado. Pousei o caixote do lixo no chão, a conter-me para não lhe dar com ele nos cornos. Era o que me apetecia fazer. Partir os cornos do filho da puta que tinha dito que eu ficava marcado. Mas contive-me. E o dia passou, acho que só com uma aula e ainda por cima falsa, onde um palhaço qualquer a fazer de professor se fartou de recomendar bibliografia esquisita. Eu ainda cheguei a comprar um dos livros, antes de descobrir que a aula tinha sido falsa, para nos fazer de parvos. Não sei se mais alguém comprou.

Depois veio a parte pior, uma aula no auditório maior, teórica. Mas não era a aula. Era as praxes. Creio que foi um ou dois dias depois. Não tenho bem a certeza. Os alunos encheram o auditório. Acho que muitos sabiam que era para as praxes, mas eu, lá das serras do Algarve, pensei que era uma aula mesmo. Só percebi quando ao procurar um lugar numa das filas do meio me apareceu pela frente a tal rapariga da pasta de dentes e do creme de barbear e, sem que eu tivesse tempo de reagir, sacou um marcador verde do soutien (se é que usava e não o segurava entre as mamas) e fez-me um risco na cara. Apeteceu-me chamar-lhe cabra, mas não consegui porque nessa altura tinha a mente ocupada com a surpresa de estar na porcaria nas praxes e não numa aula teórica. O que poderia fazer? Era isso que eu pensava.

Fui-me sentar num lugar vago na fila em frente, e pelo caminho reparei, que a cabra já riscava outro rapaz depois de sacar o marcador, que escondeu logo a seguir. Pensei que deveria chegar a casa com as mamas todas verdes, porque parecia nem ter tampa no marcador. A cabra das mamas verdes. Podia haver quem gostasse. Pensei em Monchique, a minha terra. O Karaté das Estevas, se a encontrasse assim, de certeza que lhe chamava um figo. E o Renhaufe a mesma coisa. Já o Zé das Cabras talvez ficasse impressionado e fugisse dela. Não sei. Devo ter pensado em mais coisas.

Estava a escrever notas como estas num pequeno bloco, para tentar passar despercebido, mas de repente aquela merda começou. Entraram lá os que mandavam naquilo, inclusive os dois filhos da puta que me tinham recebido à porta no primeiro dia. Claro que fui um dos escolhidos pata ir fazer figura de parvo. Chamaram-me logo mais um grupo de cinco ou seis. Pensei que era por ter a marca na cara e que devia ter tentado tirá-la com cuspo. Mas não. Eles reconheciam-me mesmo sem a marca. Havia uns do grupo que não estavam marcados. Por isso lá fui. Ia decidido a não armar problemas no meio daquela assistência toda, onde percebi que estavam alguns professores, pela idade que aparentavam.

Aquilo era completamente estúpido e nalguns casos, para mim, humilhante. Mas calhou-me uma coisa fácil: ir para cima de uma cadeira, descalço (convém não ir para aquela merda com buracos nas meias), em frente a outro desgraçado nas mesmas condições e imitar um galo (fingir bater as asas com os braços e gritar có có ró có có). Fizemos os dois uma figura triste durante trinta segundos, mas não dava para desatar ali à porrada no meio do que parecia ser uma festa académica que até metia professores. Puta que os pariu também!

Regressei ao meu lugar, descalço, e só aí é que calcei as meias e as botas. Ainda havia quem se risse de mim. Decidi ignorar. Achei que já não me iam chatear mais. E a verdade é que não me chatearam. Mas os outros do grupo tiveram provas mesmo piores, pelo menos seriam piores para mim (por exemplo, ficar em cuecas, vestir uma saia transparente e dançar, o mais próximo que conseguissem do ballet. Parvoíces e mais parvoíces, com um auditório cheio a rir, inclusive os caloiros que não tinham sido escolhidos, a maioria, aliás.

Depois houve a eleição da miss caloira e nos dois primeiros lugares ficaram duas raparigas que depois descobri que calharam na minha turma. Essa parte não foi muito puxada para elas, não precisaram de se despir, mas para as avaliações tiveram de se pôr um bocado a jeito dos filhos da puta que iam conduzindo a festa. E foi assim, uma coisa soft, sem mortos nem feridos, mas eu não gostei.

E ainda me lembro dos filhos da puta da organização. Puta que os pariu! Devem gerir empresas por aí. O curso era de gestão. Ou estão desempregados. Ou emigraram. Ou algum já morreu. Eu sei lá..., Nunca gostei de merdas daquelas. Mas depois, com o passar dos anos, comecei a ver merdas piores, bem piores. E a saber de mortes. Tenho de reconhecer que aquilo da pasta de dentes e do creme de barbear se calhar nem merecia que se atirasse com um tipo ao chão. Mas se o tempo voltasse para trás eu agora ia esforçar-me mais para acertar mesmo com um pontapé no focinho do filho da puta que atirei ao chão. Foi uma semana daquela merda.

Mais tarde colegas meus, de Lisboa, disseram-me que já sabiam daquilo e que por isso não tinham aparecido nas aulas na primeira semana. Eu sabia lá... Eu tinha chegado de Monchique. Sabia tanto de praxes como o Karaté das Estevas, o tal que não haveria de deitar fora uma a cabra das mamas verdes. Por isso lá andei a semana inteira, a defender-me quando achava que era demais (bigodes de pasta de dentes, f***-se, nem que fosse preciso haver porrada...). Outras coisas deixei.

Outra cabra pintou-me a cara com giz. Andava sempre de giz na mão e acho que não usava soutien (pelo menos não tinha mamas). Era tão feia, tão feia mas mesmo tão feia que eu fiquei feito parvo a olhar para ela a tentar perceber se usava uma máscara ou se era mesmo assim. E entretanto ela pintou-me a cara de branco. Como tinha pintado tantos por ali, nem me preocupei em ir logo lavar a cara. Fui daí a bocado, antes de regressar a casa. A cabra feia parecia impressionar os caloiros. Deixavam-se pintar, de olhos fixados nela, incrédulos com o que viam. Cheguei a pensar que era uma bruxa, mas depois acabei por vê-la andar por lá com o saco dos livros e dos cadernos.

As raparigas das praxes eram quase todas feias, mas aquela distinguia-se. Já os tipos, o que os distinguia, era a tendência para a ordinarice e para manifestarem uma certa superioridade, e também o facto de andarem em grupo, não se desse o caso de terem de levar nos cornos. Terminou tudo ao fim de uma semana. Com mais uma aula teórica inventada no auditório maior. Aos poucos os caloiros tinham perdido o medo daquilo e já estavam por tudo.

O auditório encheu outra vez. E os mesmos tipos das praxes lá apareceram a conduzir a festa. A cabra das mamas verdes, dessa vez, nem a vi. A bruxa do giz branco a mesma coisa. Eu tinha-as posto as duas a caminho de Monchique numa das minhas histórias, a das mamas verdes para ser apanhada pelo Karaté das Estevas, a sem mamas para ficar a cargo do Renhaufe, ou talvez do Jacaréu, ou na volta para fazer o jeito ao Sapo dos Montes Claros. Se calhar foi por isso que não as vi, ou que não reparei nelas. Estavam na história e estavam muito bem. E a julgar pelo que eu sabia do Karaté das Estevas, do Renhaufe, do Jacaréu e do Sapo dos Montes Claros estavam bem fo*****. Aquelas duas cabras...

Fui-me sentar numa das últimas filas do auditório. Pensei que estaria mais a salvo do que pudesse acontecer. Mas a festa, afinal, era diferente. Os tipos queriam dar-nos uma espécie de lição de participação cívica, umas tretas, política, sei lá o que mais. Já se entrava na fase da seriedade. Já devíamos estar integrados na cultura académica. Pelo menos foi o que pensei que os filhos da puta pensavam. Senti-me tranquilo. Larguei o bloco onde escrevia e tomei atenção. O que seria que tinham preparado?

Muitos como eu fariam esta pergunta. Que teve respostas nem cinco minutos depois. Um dos filhos da puta, que usava um bigodinho parvo à Hitler só que castanho mais baixo e mais largo (enfim, com tantas diferenças nem seria um bigode à Hitler, mas também não era nenhum bigode à Clark Gable...), esse tipo apresentou um orador. Era um colega nosso, que estava lá matriculado havia já algum tempo mas que ao que percebi ainda se mantinha no primeiro ano. Foi a única vez que o vi lá.

Apresentou-o como um promissor líder político. Isto vai para trinta anos. Era de uma juventude de um partido, a socialista. Nada retive do que nos disse durante já não sei quanto tempo. Foi apresentado como António José Seguro. Para mim foi como se tivessem dito que era o Manuel Francisco da Silva. Ou o Karaté dos Montes Claros. Ou o Jacaréu Renhaufe das Estevas. Não o conhecia de lado nenhum. Nem fiquei a conhecer. Mais tarde é que ouvi falar dele, cada vez mais!”

Ah ganda Tonho, quem escreve assim não é gago. Eu, no seu lugar, faria o mesmo.

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