terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (6º Episódio)

UM POUCO DE HISTÓRIA...


José da Quinta, pai de Luísa, viria a falecer em 1957, por mero acaso, ano de início das emissões regulares de televisão em Portugal.
Morreu desventurado, como sempre viveu, em lugar para pobres e indigentes, na misericórdia do concelho que o viu também nascer.
Antes de aí ter sido colocado pelos filhos, tinha vivido os seus últimos anos em casa de seu filho mais novo, homem remediado, que fazia dele o descendente com melhores posses para amparar o seu procriador.

Expirou só, certamente ao início da noite, pois, quando o encontraram de manhã, já estava mais resfriado que o caramelo em noite de inverno e, só com muita dificuldade lhe conseguiram vestir os seus trapos menos usados, para que tivesse uma afiguração mínima, quando encarasse, no outro mundo, o apóstolo das chaves.
A mesma ventura não teve em relação ao calçado, pois para além da tesura articular que já apresentava, quando lhe tentaram enfiar umas botas que lhe tinham arranjado, de dádiva qualquer, rapidamente concluíram ser tal lida impossível, pois estas eram de tamanho trinta e nove e o da Quinta sempre calçara o quarenta e dois. Mas tal não impediu que o finado as levasse a seu lado, por indução do seu genro Manuel, que logo ali alvitrou, que as metessem no caixão, que ele teria muito tempo para as domar e calçar lá na outra vida...

Viveu José da Quinta cerca de oito décadas. Era assim conhecido porque seu pai vivia numa quinta, e quando se encontrava na flor da idade, por volta da sua vintena de anos, foi bafejado pelo acaso de ter assistido ao fenómeno da mudança de século, do dezanove para o vinte.
Foi portanto José, que da Quinta lhe chamavam, atestador ocular de diversos acontecimentos peculiares, que sempre marcam estas datas de mudança de século. Mas dos quais, após cem anos, apenas nos chegam alguns ecos e às vezes distorcidos, ou dados memoráveis, que relatam apenas a versão dos predominantes, ou triunfantes quando de pelejas se tratar. E isto nos tempos que correm, em que o domínio da escrita é quase universalizado.

Cogitemos agora, como seria há dois mil anos, como aconteceu com a escritura do livro histórico mais importante da comunicação escrita, que apenas começou a ser registado trezentos anos após os acontecimentos mais relevantes que aí se contam, e ainda por cima, sobre alguém que dizem ter nascido como uma criatura banal e de quem apenas fizeram monarca após o seu fenecimento.

Não foi o caso desta nossa personagem, que nem a valete chegou (apesar de serem as cartas, muitas vezes o seu objecto de trabalho, como já referimos precedentemente) …e por isso, as dificuldades, para o autor destas pobres crónicas, se tornam acrescidas.

«Não eram fáceis os tempos, desse final de século.
No país reinava, carlos fernando luís maria vitor miguel rafael gabriel gonzaga xavier francisco de assis josé simão e vicente de fora, aquele que haveria de ser o único rei a ser assassinado publicamente, pelo menos que se saiba.

Havia subido ao trono em 1889, quando tinha vinte e cinco anos de idade, sucedendo a seu pai. Portanto há cerca de meia-dúzia de anos, por altura dos acontecimentos que agora aqui se narram.
Desde que o filho de maria pia reinava no país, constava por estas bandas, que os seus governos de regeneradores e progressistas, se sucediam quase com a frequência com que as marrãs parideiras dão à luz os seus bacorinhos, isto é, aproximadamente de três meses e vinte dias.
A situação do país, essa porém, era incessantemente a mesma, nem piorava nem melhorava, sobretudo, porque não podia piorar mais.

O da Quinta era um pouco mais novo que sua majestade e teria em 1895, aproximadamente dezoito anos de idade. E dizemos aproximadamente, porque isto de atribuir idade a um plebeu nessa época, não era exactamente o mesmo que atribuir anos ou nomes a um rei, pois os seus assentamentos nem sempre correspondiam à idade que um maltês levava no pêlo.
Vivia o mancebo em casa de seus pais, numa quinta entre S. Salvador que alguns denominam da Aramenha, e os Alvarrões, no sítio da Rasa. E com esta idade, já se poderia dizer que era um mestre na serração de pau e pinho. Pelo menos enquanto o sol brilhava no horizonte, porque essa revindicação das oito horas de trabalho diário, ainda levaria uns anos a chegar por cá, pois ainda há pouco tempo que tal invenção, teve o seu início do lado de lá do Atlântico, e tenhamos em conta que a televisão ainda não havia sido inventada.

Era já forçoso nessa época, que ano em que se completasse dezoito anos de idade, deveriam os moços dirigir-se às sedes de seus concelhos, sobretudo, se de varões se tratassem, para aí serem recenseados para o serviço militar. E assim procedeu o serrador da Quinta. Tendo completado essa idade no mês de Novembro desse ano da graça, subiu o serrador as ladeiras a caminho de Marvão, para que aí tomassem nota de seu nome, como rapaz perfeito e viril que se prezava de ser, e capaz de proteger o reino do senhor da casa de bragança.


As Portas da Vila

Não se pense que Marvão era como nos dias de hoje, conhecido por meio mundo, pois este trabalhador de madeira bruta, sempre viveu aqui nas encostas deste monte, e está agora a dirigir-se pela primeira vez na sua vida, aos refúgios de ibn marwan. Não admira por isso que vá enganado.

Ao cruzar os arcos das portas da vila, não perdeu o serrador muito tempo a admirar a sua esplendorosa arquitectura, a tanto não o ajudavam os seus saberes, e como não tendo por ali vislumbrado alma viva a quem perguntar onde seria a Câmara Municipal, resolveu subir a rua que o havia de levar à praça do pelourinho.
Ali chegado, deduziu que estaria no centro da vila, pois estes locais de fazer justiça, quase sempre ocupam lugares privilegiados e centrais, para que todos aí tenham acesso com facilidade. Mas neste caso, continuava o serrador, sem enxergar alguém que o informasse de suas dúvidas, e foi com dificuldade, que no meio do nevoeiro que sempre aqui mora, por esta época, que lhe surgiu a figura de uma mulher de meia-idade embrulhada num xaile, a quem o serrador perguntou onde seria o local que procurava.

Não obteve o da Quinta qualquer resposta imediata por parte da musa, como seria o de lhe responder, simplesmente, que deveria ser ceguinho, pois não via que era mesmo ali em frente dos seus olhos. Ou então, ainda com mais perspicácia, como a resposta…do que o que vossemecê quer sei eu!
Mas não, em vez de resposta simples, recebeu um sorriso irónico, tão característico das mulheres quando sabem, mas não querem dizer, que o deixou completamente aos papéis.

Preocupado como estava em chegar ao sítio que procurava que não reparou o jovem serrador, num primeiro momento, nas feições graciosas da sua informadora. Nomeadamente, no brilho esverdeado de seus olhos, que assim de repente, lhe fizeram lembrar a cor da caruma dos pinheiros, que diariamente tirava dos troncos que ia cerrando.
Tão enfeitiçado estava nas feições da mulher, que quando deu por si, só já apanhou a parte final de seu discorro, no qual a marvanense lhe anunciava que a Câmara de Marvão já não existia! …

Vai já o serrador da Quinta, descendo a encosta pela nascente, através da calçada romana que o há-de levar à Portagem. A voz da marvanense, de olhos da cor de caruma de pinheiro, continua a ecoar nos seus ouvidos e penetrando nas profundezas dos seus neurónios, como uma música de intervenção.
Conseguia agora recordar toda a sua conversa sobre a Câmara, que houvera encerrado há cerca de um mês, por ordem do governo regenerador do ribeiro, que o concelho de Marvão havia sido apagado, que o presidente magalhães e os vereadores pinheiro, forte, serra e rosado, talvez enganados pelos progressistas, haviam aceitado esta decisão como cordeirinhos; assim como o administrador afonso e o secretário pinto de Sousa que tinha entregue todo o Arquivo ao judeu castelovidense; tudo sem qualquer revolta, metendo todos o rabo entre as pernas e lá tinham ido chorar lágrimas de crocodilo para o regaço das suas esposas; que parecia que já não existiam homens com eles no sítio por estas paragens, que fosse a Maria da Fonte destes lados para comandar o povo e a história seria outra…, que se devia ter exigido se se tinha que extinguir um concelho que fosse o de Castelo de Vide, que sempre nos haviam enganado e vivido à custa do suor desta nobre terra, que agora pertencia ao termo de Castelo de Vide…onde ele se deveria dirigir se quisesse dar o nome para servir tal canalha, etc., etc.…»

Praça do Pelourinho...ou do encontro.

Parou agora por momentos o serrador e levando a mão ao bolso, procura aí a sua pataca de tabaco.
Enrola calmamente um cigarro, acendendo-o de seguida, virando-se na direcção do monte do castelo e, de repente…pareceu-lhe ver no meio do nevoeiro a marvanense de olhos verdes…

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