E ganhámos à nossa maneira dramática. Caído o comandante, onze guerreiros portugueses souberam seguir o que o racionalíssimo treinador português – o extraordinário engenheiro – lhes dizia e foram, como um vinho que precisa de estágio, jogando melhor minuto a minuto. Se o jogo tivesse cinco horas, Portugal acabaria a jogar um futebol que nem Pelé ou Maradona saberiam jogar.”
Pela primeira
vez desde que me conheço internauta nada escrevi sobre este campeonato da Europa
que agora terminou. Talvez fosse também o tal sinal! Descrente, pensarão
aqueles que pensam que me conhecem...
Nada disso. Não
escrevi pura e simplesmente porque não me apeteceu. E, assim, pude desfrutar de
um prazer egoísta na hora da vitória, que certamente nunca mais terei
oportunidade de viver nesta vida terrena.
Mas ainda bem
que o não fiz. Pude assim, de uma forma mais liberta, apreciar de tudo aquilo
que se escreveu, disse e mostrou nesta campanha francesa, em que tanta coisa feia se disse e escreveu. Mas também coisas bonitas aconteceram e, é nessa
perspectiva, que pude desfrutar do texto que aqui
encontrei, que na minha modesta opinião é uma das coisas mais bonitas que li
sobre o europeu do nosso contentamento e que, para memória futura, aqui partilho convosco:
"Nasceu
em Bissau o pé direito que fez Portugal campeão
por Manuel S. Fonseca
Reunidos em
concílio, os deuses tinham decidido que a França seria campeã europeia. Os
deuses já não se reuniam em concílio desde que Luís de Camões se lembre, e Luís
de Camões deixou de se lembrar já lá vão praticamente cinco séculos. Desta vez,
os deuses decidiram por unanimidade.
Mesmo Vénus, com
um olho em Cristiano, deixou-se empolgar pelo hercúleo meio-campo francês. Mas
mesmo quando les jeux sont faits,
há sempre qualquer coisa que va plus. A meio
catrineta nau portuguesa parecia desgovernada e aos 17 minutos sofre um golpe
baixo. Cristiano Ronaldo aparece tombado no campo de batalha. Um jogo que devia
ser guerreiro, glorioso e épico é aflorado pela aflitiva cor púrpura da
tragédia.
Os velhos deuses
vacilaram. A França é uma grande equipa, reunia os favores olímpicos, mas
desequilibrar assim as forças em presença pareceu, mesmo aos deuses amorais,
uma afronta à estética. Aos 17 minutos, os deuses decidiram abdicar e entregar
aos 22 jogadores que estavam em campo a decisão. O que se passou, a partir dos
17 minutos de jogo, no Stade de France foi humano, muito humano. E Portugal
ganhou.
É empolgante
ganhar. A mim convida-me sempre a um delicioso silêncio. Se me pusessem uma
câmara de televisão à frente, não conseguiria falar, nem saltar aos gritos de
olé, olé, nem berrar contra o adversário. Poria um bezerro sorriso de
felicidade. Sabe-me bem a vitória. Soube-me bem ontem à noite (tão leve e
fresco o champagne que se faz na bela França!) e sabe-me agora ainda melhor
nesta manhã de férias, antes de meter os calções e ir para a praia. O cheiro da
vitória pela manhã!
E não é de
napalm o meu cheiro de vitória. Ganhámos à França e se eu amo a França. Gosto
da língua, belíssima, apaixonada, veemente, cheia de sexys buraquinhos
filosóficos. Gosto da Normandia e da Bretanha, do sol de Nice, Cannes e
Saint-Tropez, dessas colinas milionárias e cosmopolitas, para não falar de
Paris, margem esquerda ou margem direita, luz do mundo, que nos deu as cores de
Cezanne e Degas e depois as de Picasso, Modigliani e Matisse. Gosto da França
de Flaubert, Balzac e Rimbaud. Gosto de champagne, de Proust, célebre
pasteleiro que tão bem, sem as saber fazer, fazia madalenas.
E gosto da
selecção nacional francesa. Tricolor, sim, mas branca e negra também. Retrato
vivo, em 2016, de séculos da odiosa, amorosa, torturada e por isso humana
relação da Europa e de África. Estão ali onze jogadores, mas há uns bons
séculos de história, subterrânea, nas veias deles.
É a grandeza da
França que faz grande a vitória de Portugal. Alguns franceses terão dito que
Portugal jogava um futebol nojento. Nem lhes responderia, mas alguns
portugueses gritam agora que ganhámos à França de merda. Discordo. Ganhámos à
grande e imensa França que guarda os modos de quem já foi Senhora do Mundo e ainda
tem na cabeça acordes de Debussy e Bizet, ou não tivesse o hino mais bonito do
mundo, no qual o de Portugal se inspirou.
E ganhámos à
nossa maneira dramática. Caído o comandante, onze guerreiros portugueses
souberam seguir o que o racionalíssimo treinador português – o extraordinário
engenheiro – lhes dizia e foram, como um vinho que precisa de estágio, jogando
melhor minuto a minuto. Se o jogo tivesse cinco horas, Portugal acabaria a
jogar um futebol que nem Pelé ou Maradona saberiam jogar.
Ganhámos, disse,
à nossa maneira dramática. Patrício, o nosso guardião, os centrais, o
gigantesco William, o veloz Raphaël Guerreiro (único português a ostentar no
nome um orgulhoso umlaut), o sábio e ardiloso Nani, o imprevisível e filosófico
Quaresma, a quem se deve já pedir um livro, foram os meus heróis. E tu, Renato,
mesmo no dia em que te conseguiram apagar, serás sempre o meu herói. Ou seriam,
até aparecer o herói desmedido e libertador a que chamaremos Éder. E o momento
histórico exige que sejamos rigorosos. O nosso herói chama-se Éderzito António
Macedo Lopes e nasceu em Bissau, em 1987. Éder fez um jogo exemplar. O seu
metro e oitenta e oito centímetros ganhou, que me esteja a lembrar, todas as
bolas que disputou no ar. Ganhou, dando o corpo ao manifesto, todas as jogadas
de bola no chão, ganhando a posição aos adversários, obrigando-os a derrubá-lo.
Ganhava um livre a cada cinco minutos. E, por causa dele, o Stade de France
inclinou-se e a bola, o maravilhoso esférico, passou a estar cada vez mais
perto da baliza do imenso Lloris, e uma vez mesmo, com estrondo, na barra da
baliza dele.
O que Éder fez
no golo é só a confirmação da sua convicção e do poder de que vinha impregnado.
Éder entrou em campo com uma missão: marcar um golo. Raphaël encarniçou-se a
disputar uma bola, já no meio campo gaulês. Sacou-a e meteu-a em William, que
de primeira a deu a Moutinho que a entregou a Éder. Está a uns vinte e cinco
metros da baliza. Um defesa francês cai-lhe em cima e o ombro esquerdo de Éder
aguenta-o. O francês cola-se-lhe como uma carraça, mas Éder já lhe ganhou a
frente. Tem à direita outro francês que hesita. Já o parasitário francês da
esquerda foi cuspido, incapaz de aguentar o poder que exala do físico de Éder.
O da direita continua a hesitar e Éder já avançou dois metros e a bola agora
oferece-se ao seu melhor pé, o direito. O francês da direita percebe o
infinito perigo, mas, num dilema cartesiano, nem sai da posição, nem vai em
cima do homem, e Éder, o homem, chuta rasteiro e cruzado para o seu lado esquerdo,
a vinte e um, vinte e dois metros da baliza, quase colando a bola ao poste,
tornando inútil o desesperado e belo vôo de Lloris.
A bola rolou nas
redes da baliza francesa – «oh, ça fait beacoup de mal aux bleus», ouço dizer
em francês – e o meu coração rende-se à beleza humana disto tudo, já não
balouçam as redes, mas balouça enlevada a minha pequena alma portuguesa que o
pé direito deste guineense de Bissau pôs em êxtase. Nasceu em Bissau o pé
direito que pôs um povo inteiro em delírio.
Gritei golo e
volto, agora, ao meu beatífico silêncio. Mas penso que ganhou a equipa que
gosta mais de jogar à bola. Os franceses gostam, claro, e jogaram bem. Mas só
gostam de jogar um bocadinho e não estavam preparados para passar ali a noite a
jogar. Os portugueses, com Ronaldo a descobrir uma forma de jogar à bola fora
das quatro linhas, estavam prontos para acampar no Stade de France e ficarem
mil horas a jogar com prazer. Os franceses gostam tanto de jogar à bola como
nós, mas nós gostamos de jogar à bola mais tempo. Fomos a selecção que jogou
mais minutos, horas perdidas que foram horas ganhas. Também por isso somos
campeões.
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