quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (4º Episódio)

NASCER, VIVER E MORRER EM MARVÃO...


Paisagem agreste da serra de Marvão



João Serra havia trabalhado o dia inteiro nas terras do Cabeço do Seixo, onde desde as seis da manhã, tinha semeado o seu meio-alqueire de centeio em terra arrendada, lavrada pela sua célebre junta de machos velhos e cheios de “pulmêra”, mas que este sempre gabara, anos mais tarde, ao seu cunhado Manuel, como sendo a melhor parelha do concelho de Marvão.

Puxava agora uns toscos acordos musicais, no seu harmónio de duas escalas, no bailarico do ti João do Barreirão na Abegôa, cerca de quinze quilómetro a sul do local da sementeira, na aba da serra de Marvão.
No salão de sobro, o som do filarmónico instrumento do Serra, saía como uma sonância arrastada e chorosa, que parecia exprimir um queixume, que dizia "…vem um homem do cabeço d´seixo… só por castigo, só por castigo…", enquanto meia-dúzia de pares de rapazes e raparigas, lá iam arrastando os pés, depois de mais um dia árduo de trabalho e, simultaneamente, aproveitando para exibir dotes a seus pares, para possível acasalamento futuro.

Estávamos então no ano de 1919, e o nosso músico estava deserto que a função desta noite chegasse ao fim. Pois, para além do corpo moído por doze horas de trabalho de lavoura, tinha ainda que palmilhar mais quinze quilómetros até ao sítio dos Carris, do outro lado do monte, onde iria conhecer Luísa, a mais nova das suas irmãs, que já havia quinze dias tinha visto, pela primeira vez, a luz do dia.

Luísa, que seria conhecida anos mais tarde por Luísa Serra, apelido que nunca constaria no seu registo de nascimento, era a sétima descendente viva de José Lourenço e Joaquina Serra.
Antes dela, separados em média por dois anos, já haviam nascido João, Maria, Catarina, Manuel, Eufrazina e Esperança. E, mais alguns nados mortos, que nunca chegaram a ter nome.

De Joaquina, muito pouco se conhece, a não ser que se tratava de mulher simples e trabalhadora, e que morreu subitamente, sozinha, na sua casa nos Carris, após separação de José Lourenço, mais conhecido por José da Quinta, jogador de cartas inveterado. Do qual se diz, que certa noite, após ter perdido todas as suas economias e mais nada tendo para jogar, pôs sobre a mesa de jogo a sua mulher Joaquina, só não a perdendo, porque o seu adversário não aceitou o desafio, perdoando-lhe a dívida.

Luísa viveu os seus primeiros anos de vida na companhia da irmã Esperança, dois anos mais velha. Os restantes irmãos, já haviam saído de casa para ganhar o pão e trabalhavam em casa de patrões. João, o mais velho, já tinha constituído família, e vivia agora do outro lado da serra, perto de Santo António das Areias. E, como sabemos, vai agora a caminho para conhecer sua irmã e visitar sua mãe, que não vê desde o seu ajuntamento com Cesaltina.

Foram poucos os anos que as duas petizas conviveram, pois Esperança haveria de ser entregue a uma família rica de Monforte, para ser criada, quando tinha apenas seis anos de idade.
Desse tempo, recorda Luísa apenas, os seus encontros fortuitos com os vizinhos, que com elas se metiam, perguntando-lhes os nomes. Ao que Esperança, por ser mais velha respondia: “eu xou Pancha, e aquela é Lija…”

Como era normal naqueles anos vinte, não frequentou Luísa qualquer escola, e embora aprendesse toda a universidade da vida, será até ao fim dos seus dias considerada como analfabeta pela estatísticas sociais.
Aos dez anos de idade, já trabalhava em casa de seu irmão Manuel, a troco de uma sopa a cada uma das refeições e um pouco de pão de centeio, com que se alimentavam os pobres dessa época, já que, essas coisas das dietas só seriam faladas muitos anos mais tarde. Durante a sua juventude, trabalhou no campo, nas terras de quase todos os proprietários das redondezas, em trabalhos sazonais, desde os Alvarrões até à Galocha.

Como já foi referido anteriormente, quis o destino, ou qualquer outro acaso, que numa das suas visitas a casa de sua irmã Maria, que após ajuntamento havia ido morar para o Vale de Carvão, conhecesse Manuel, e como costuma acontecer nestas situações, logo ali os dois estranhos se deram d´olho.
Claro que esses tempos, não eram como os dias de hoje, que mal dois jovens se conhecem, logo começam a ufanar-se de andarem
No caso destes dois, o que podemos dizer com propriedade é que foram apresentados. Se assim se pode dizer da acção de malandrice, usada por Maria, quando disse com simplicidade de mulher, “olha mana…este aqui, é o Manel, filho do moleiro ali do Pego Ferreiro…”.
Não precisou Maria de promover mais, qualquer propósito de charme junto dos dois moços, pois sem se saber muito bem porquê, ou talvez, porque cupido escondido atrás de um dos canchos que circundavam a pobre casa de Maria, ao ver os dois estranhos parados frente-a-frente, lhes lançou a sua certeira seta e logo ali, lhes traçou o fado.

Haviam já passado dois meses desde o encontro de Luísa, rapariga trabalhadora por conta de outrem e Manuel, rapaz contrabandista de café e azeite, que ajudava o seu pai na arte do moinho, mas que nunca havia trabalhado para ninguém, postando em prática a divisa de seu pai Xico Bugalhão, que afirmava “que em sua casa nunca nenhum dos seus filhos trabalharia para patrão algum.”

Luísa conseguira nesse dia, convencer sua mãe a irem ao baile das festas da Aramenha. Para tal, vestira o seu mais bonito vestido, que sua irmã Esperança lhe havia trazido na última visita, e que tinha sido de uma das filhas da sua abastada patroa de Monforte.
Sentada no colo de sua mãe, assistia às diversas desgarradas entre rapazes e raparigas, em despiques de sedução tão em uso nessa época, quando, deu pela chegada de rapaz desconhecido, montado no seu macho vermelho.

Terá o vermelho parado por aqui...
Estremeceu o coração de Luísa, ao verificar que afinal o dono do macho vermelho era Manuel, moço que lhe havia apresentado sua irmã. E como moça cantadeira que se orgulhava de ser, logo na sua cabeça se começaram a desenhar as rimas das palavras que prontamente lhe saíram da garganta, e em tom de desfio, as lançou ao vento: "amor nesse teu rosto/ é onde eu me entretenho/ se tu em mim fazes gosto/ eu em ti melhor empenho".

Não manifestou Manuel qualquer reacção de resposta, fazendo-se até desapercebido, pois como sabemos não é Manuel rapaz extrovertido, que andasse para aqui a responder a cantigas de raparigas.
Mas a resposta sabemo-la nós e, certamente, que na manhã seguinte fará parte do reportório do filho do moleiro, quando na solidão do seu moinho, trautear a réplica a esta atrevida: "eu queria se feiticeiro/ dessa tua criatura/ também queria afeiçoar/ uma cara como a tua…".

Seis meses depois, montariam estes dois o macho vermelho, já aberto dos peitos, das constantes cavalgadas que o seu dono o obrigou a fazer entre o Pego Ferreiro e os Carris, e passariam a sua noite de núpcias em casa de Julião Pena e Mari´zei, a partir desse momento, cunhados da cantadeira dos Carris.

O que o autor desta crónica nunca conseguiu apurar, é se o nobre animal conseguiu transportar directamente o casal para o Vale Carvão, ou, se de tão “cansado”, se viu obrigado a retemperar energias, num dos vários prados que se lhe depararam no percurso…

4 comentários:

Luís Bugalhão disse...

e lá está, tenho mais coisas a dizer, com a presunção de serem... enriquecedoras.

não o direi aqui. mando pr'á cx de correio electrónico. mas só quando estudar, investigar, reflectir, etc...

aqui nada, que ainda levo com o mata borrão (desconfio, mas n sei quem será).

de resto, ainda bem que chegou o 4º episódio. estava ansioso. agora estou... confuso.

abraço, e siga o baile (que com tanta cantadeira e tocador de harmónica com dois tons (!!!), isto há-de dar festa.

'bracinho tio. cm diriam as minhas filhas: isto está a bombar.

ps. já aprendeste a fazer itálicos! boa! 'bora largar as aspas (e não abusar dos itálicos...)! fica mais... à maneira do meu saber, iykwim (n é um erro. é um acrónimo ou uma sigla. vai tb à procura)

Maria disse...

Continuo a gostar!

A estória faz-nos recuar no tempo, e, conseguimos visualizar mentalmente os acontecimentos. Grandes tempos estes que tu descreves, e a malta ainda tinha (ora bom se tinha…) fôlego para tudo isto.
Só assim se percebe o porquê da inexistência da moda das “dietas”, pudera!

Mas pelos vistos, já existia a “moda” da violência doméstica q.b., só que não se falava disso e nada se fazia; não é como agora: falam… falam…

Quanto às fotos… lindas, ou não fosse para mim o “agreste”(tou aqui tou a levar nas orelhas, môde as aspas) também ele igualmente belo.

Lanço apenas uma questão: os Bugalhões também têm elementos femininos, certo? Manifestem-se por favor…

T.A. nã consigo saberi a sigla do Luís por mais que puxe p’lu tótiço…
agora esté fácel…


bjocas

Mário Bugalhão disse...

Tristes, muito tristes.
Assim eram as pessoas que encontrei, ao fim do dia, no percurso que fiz entre o trabalho e a estação de comboio.
Nem um sorriso apressado.
Apressados, só os corpos em busca do refúgio da chegada.
Como é possível viver assim?

Já na carruagem, pessoas de olhos fechados a fingir que dormem, e outras, de olhos abertos a fingir que vêem.
Faz de conta, esta viagem.

Toca a campainha das portas, anunciando a chegada a mais um destino.
As pessoas saem, de cabeça baixa, acotovelando-se, não vá a do lado dar o passo maior.
Entra ar puro enquanto as portas se mantêm abertas.
Perco a esperança.
Dos novos companheiros de viagem que entraram, nem um sinal de alegria.
Todos trazem no rosto, o sorriso ao contrário.
Paisagem esta, bem mais agreste e deprimente, do que aquela que se vê nas fotografias deste episódio 4º.
Será que as pessoas ficaram em casa e, mandaram as suas tristes sombras trabalhar?

Lá vai o comboio, massajando o corpo, adormecendo o pensamento, seguro no seu carril.

Era assim o macho do Ti Manel Bugalhão, seguindo o carril, quando lavrava.
Cabeça baixa com o olhos a acompanhar.
Focinho babado, beiças arregaladas, e os dentes a luzir.
Parecia até sorrir.
Se calhar, feliz por não ser burro.
Algumas das minhas companhias, da carruagem onde vou, teriam inveja do sorriso do macho.

Lá ia ele, rego após rego.
-Anda macho d`um cabrão.
-“Pa riba, pa riba macho”, gritava.
Ia abrindo feridas na lavrada, e ao mesmo tempo, estendendo uma toalha de terra fina, escura e fresca, que servia de festim, para os pássaros não convidados.
-Anda corno, dizia prolongando os ós.
-“Ó baixo, ó baixo”, instruía o Ti Manel, sempre que o bicho se distraía, e o rego entortava.

O céu estava parado.
O vento também.
O sol, ardia no lombo do macho e nas goelas do homem, vingando-se dos momentos em que as nuvens o não deixavam passar.
Um convite.

Pararam debaixo de uma oliveira.
O macho para retemperar as suas forças, o Ti Manel, para matar o vicio e preparar um cigarrito.
Tabaco numa mão, mortalha na outra, corpo imóvel, e muito cuidado para juntar os dois ingredientes, não fosse a mão falhar.
Enrolava, apertava, e por fim, sobrava sempre um pouco de saliva que o sol não secara, para selar o “paivante”.

Isto é que é vida.
O sol, o campo, a paz, e o descanso merecido
Mas o melhor de tudo, era sentir o fumo do cigarro a deslizar pela garganta, até lhe alugar os pulmões.

Pára o comboio.
É a minha estação.
Levanto-me com cuidado (tive a sorte de fazer a viagem sentado), empurra daqui, empurra dali, e lá vou eu, cabeça levantada, olhar em frente, arriscando-me a levar uma pisadela por mostrar tal altivez; mas é o risco que corro por não estar triste e de cabeça baixa, apesar de ter motivos para isso.

Um abraço a todos.


P.S. – Tio João, o pessoal anda atento, apesar de não parecer.
De episódio em episódio se faz a história.
As críticas estão a amolecer.
É cansaço, falta de tempo, ou bom desempenho do escritor?
Ou existem e não se vêem?

mata borrão disse...

E naquela noite, naquele sobrado, naquele baile, sob o olhar persistente de Manel, Luisa, a cantadeira, cantou:

Mamã compra-me um vestido
Quês este ‘stá comprido
P’rá adoçar o chá

O chá, o chá - lestom
Calcinha alta
Casaquinho à papilom

Mamã compra-me uns sapatos
Quês estes já ‘tão gastos
P’rá adoçar o chá

O chá, o chá - lestom
Calcinha alta
Casaquinho à papilom

Mamã compra-me umas meias
Quês estas já ‘tão feias
P’rá adoçar o chá

O chá, o chá - lestom
Calcinha alta
Casaquinho à papilom

E a minha memória imaginária voa longe, longe para esta improvável cena.
No Alentejo mais lindo e profundo, sem estradas, sem luz eléctrica, sem rádio, numa noite qualquer… uma mulher canta um charleston doce, de tanto ser adoçado, para todos dançarem.

Como dançariam? A par, passo para ali, passo para aqui, no ritmo certo, como umas saias?
Ou seria frente a frente, com os bracinhos e as perninhas, para lá e para cá, à vez?

E como seriam os cabelos, as roupas, os sapatos?

Que pensariam os músicos da Carolina do Sul, se ali chagassem?

Mamã compra-me …
Que estes já …
P’rá adoçar o chá

O chá, o chá – lestom…

Quem mundo lindo e maravilhoso, este!