sábado, 26 de janeiro de 2008

O VÍRGULA...


A casa do Pego Ferreiro



Janeiro é por natureza um mês feio para os urbanos por causa da chuva. Mas um mês fundamental para aqueles que vivem nos campos, e que ainda sabem avaliar os favores do tempo.
Não nos dias que correm, onde as chuvas já pouco importam, mesmo aos rústicos, pois como todos sabemos, o cultivo já teve melhores dias, pelo menos neste país de sol e praia.
No entanto, sempre que ocorre um inverno mais seco e uma primavera um pouco solarenga, quando chega o estio, e nos vemos ameaçados com a amofinação de não nos podermos banhar diariamente à grande e à francesa, lá se lembram os das cidades, que talvez não tivesse sido boa ideia terem andado a exaltar, que tinha sido bom o tempo do inverno, só porque não choveu.



A casa do Pego Ferreiro, e vista do Moinho



Não foi o caso deste ano de 1920, pois que, dos quinze dias que este primeiro mês já leva decorridos, ainda não parou de diluviar. Até parece, que o poder divino se esqueceu de que há pobres que precisam de ganhar o sustento, que não têm uma seara nas costas, que pouco têm com que se cobrir, a não ser, o colmo dos seus casebres à noite, e a copa de alguma árvore durante o dia.

Acordou Teresa, mulher do moleiro, um pouco enjoada, não sabendo se, por noite mal dormida, ou porque terá chegado o dia de parir o ser que em si vem gerando há cerca de nove meses.

Xico, assim se chamava o moleiro do Pego Ferreiro, havia chegado a casa, quando já anoitecia, depois de mais um dia de freguesia, na distribuição dos talêgos de farinha, pelos muitos fregueses por onde haviam passado há duas semanas atrás a recolher o grão, que lhe dera origem.
Como de costume, chegava amontado no seu Macho preferido, que sabia o caminho da casa de cor, trazendo em fila indiana, uns presos aos outros, a sua vasta frota de tires muares. E também como era hábito, era elevada a taxa de alcoolemia que circulava nas suas veias e artérias. Proveito do seu bom trato com muitos dos amigos fregueses, que se orgulhava de ter.



A auto-estrada dos Tires muares


Tivessem os vigias daquela época, efectuado uma daquelas operações de fiscalização e propaganda, tão na moda nos tempos de hoje e, certamente, o moleiro teria que recorrer aos préstimos dos confrades de então, do seu vindouro bisneto Mário, senão quisesse ver a sua concessão de condução de machos e mulas confiscada, para além da elevada coima que lhe assentariam.

Sempre o vinho teve nomeada de tornar as pessoas mais inconscientes e belicosas, sobretudo se ingerido em quantidades exageradas, mas não era esse o efeito produzido com o moleiro Xico Bugalhão. Pois, parecia que quanto mais bebia, mais os seus humores pareciam benfeitorizar.
Só que Teresa, diga-se como quase todas as mulheres, sobretudo, se de esposas se tratar, é que parecia não estar pelos ajustes. E ainda, o moleiro não se havia apeado do seu anjo muar, e já ela irrompia em desmedido pranto, maldizendo e amaldiçoando o precioso néctar, e desejando que este já se tivesse esgotado…, ao que o moleiro respondia: eu bem tento… mas, tu não me ajudas!
Mas em simultâneo, talvez guiada por inspiração religiosa matrimonial, lá o ia amparando até junto do lume, que sempre crepitava na chaminé, para que este pudesse enxugar, em próprio corpo, a roupa ensopada da rega que tinha apanhado.

As pedras do Moinho semi-enterradas

Enquanto Teresa e a filha mais velha Joaquina, procediam à acomodação da frota dos tires muares nas respectivas quadras, e ainda mal o moleiro se havia acomodado junto ao lume, já as suas duas filhas mais novas, Marizei e Genoveva a quem chamavam Conceição, se lhe atiravam para o colo, pois já sabiam que aquele serão seria longo e de muitas histórias e cantilenas.

Sabemos hoje que muitas das estórias e cantilenas infantis, mais não são que uma maneira graciosa de nos moldar social e culturalmente e, não raras as vezes se profere que são verdadeiras e ardis estratégias de instrução sexual. Assim se diz do capuchinho vermelho, da gata borralheira, da branca de neve e sete anões, da carochinha e de outras agora mais hodiernas…
Não podemos extrapolar se seria essa a reflexão pedagógica do moleiro Bugalhão. Tenhamos em conta que eram duros aqueles tempos, tais como os de hoje, em que costumamos dizer que nem tempo temos para nos aliviar de fluidos produzidos pelo organismo ao longo do dia, tal o frenesim em que nos obrigam a viver.

O facto é que quando Teresa, a mãe, e Joaquina, a filha, se preparavam para entrar em casa, depois de cumprida a sua missão de arrumadoras, e sem que lhes tivessem dado qualquer gorjeta, puderam ainda ouvir o final da cantilena com que o moleiro mimoseava as filhas mais novas:
“…encontrei maria a cag…/ p´ra cima de uma travessa/ botê-lhe a capa p´ra cima/ maria cag… depressa”…
Ficou Joaquina mais escarlate que o rubro do pendão português, então recentemente criado, e Teresa à beira daquilo a que futuramente se chamaria, um carga de nervos…

Saídas de água do Moinho do Pego Ferreiro


Tal o baque sofrido por Teresa ao ouvir tal linguajar para as duas inocentes, que desatou novamente no carpido interrompido e vociferando contra a sua desditosa vida…este homem desgraça-se a ele e a mim…, que não me leva o Senhor, deste mundo, etc., etc.…

Levou Xico algum tempo a reagir ao aranzel da mulher. Mas, esta última oração parecia-lhe cair mesmo a propósito. Levantou-se, pousando Marizei com todo o afecto sobre o banco em que antes se encontrava sentado, e dirigindo-se à mulher pegou nela ao colo embaraçada e, tropeçando, dirigiu-se para o quarto contíguo, deitando-a sobre a tosca coberta que cobria a enxerga.
Depois, calmamente, dirigiu-se à mesa da sala, onde jaziam dois redentores em poses de via-sacra e, pegando-lhes com o apreço divino que tais estaturas mereciam, foi colocá-los, um de cada lado da mulher, verbalizando: …vá Teresa, com qual queres ir…com este, ou com aquele…?

À entrada da porta Joaquina, já uma mulherzinha e as duas petizas, riam às gargalhadas. Viu-se a mulher do moleiro naqueles preparos e ante tal cena, sem se saber muito bem por quê desatou também a rir…e, de repente sentiu uma dor intensa, como se algo se lhe arrancasse interiormente.
Depois dessa, outras se seguiram, cada vez mais violentas.

Não cantarolava já agora o moleiro. Num impulso tinha pegado nos dois cristos e sem saber muito bem o que fazer, como sempre acontece aos homens nestas situações, andava de cá para lá com os ditos nas mãos, talvez, quem sabe, suplicando por uma boa hora…
Valeu-lhe a chegada de sua mãe, Teresa Gonçalves, chamada com urgência por Joaquina. Sempre as mães nos chegam nas horas certas e de apoquentação, sobretudo àqueles, que ainda têm a ventura de as ter.

O rio Sever junto ao Moinho, testemunho vivo destas estórias...


Pouco faltava para a meia-noite, quando a avó Teresa, conseguiu retirar com vida das entranhas de sua nora, o segundo filho varão do casal de moleiros, que seria o único, pois o primeiro havia falecido da lua entripal, e a partir daí só germinariam filhas: Maria a que todos conheceram por Júlia, Luísa e Emília de uma só vez, e por fim Vicência.

Há horas de sorte na vida, tal como foi o caso da natividade desta criança; o ter nascido viva e sem deixar sequelas em sua ascendente, numa época em que a mortandade infantil e materna, não era aquilo que é hoje, pois quase sempre, o balanço entre vivos e mortos, quase se igualava a zero.
Teve sorte este moço, ao nascer vivo e valente, para as noites de geada e maresia que iria passar no futuro ao relento, certamente influenciado pelas práticas de preparação para o parto usadas por seu pai. Ou talvez, quem sabe, devido a alguma jura feita aos redentores, na hora da aflição.

Está agora ao colo de sua avó Teresa Gonçalves, mulher fumadora e boémia, de quem se diz, frequentar tascas e tabernas da época, para jogar a bago com os competidores masculinos e claro beber uns copos. Onde seu marido, Zé Bugalhão, levava as crianças, que ficava a velar em casa, para que ali mesmo, fossem aleitadas.
Pode por agora usufruir esse colo e, simultaneamente, da primeira cantilena que esta lhe vai cantando:
“…ai pirroli, pirroli, pirroli/ ai pirroli, pirroli, pirrolé…/ se não queres chocolate, nem aguardente/ bebes café”.

Um mês após este nascimento, e aquando de mais uma distribuição de farinha pela freguesia, apresentar-se-á, o moleiro, no registo civil de Santo António das Areias, dizendo que lhe nasceu um filho e que se chamará Manuel…
Mas não presume o moleiro que, seguramente, por questões hereditárias, o dito virá ser conhecido por estes sítios, não por esse nome, mas por outro, com que será rebaptizado pelos seus camaradas de escola: O VÍRGULA!

Mas para isso, terão ainda de passar mais seis ou sete anos…


sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

RENDIMENTOS DO CAPITAL GENÉTICO...

Escrito por: Mário Bugalhão


Tristes, muito tristes.
Assim eram as pessoas que encontrei, ao fim do dia, no percurso que fiz entre o trabalho e a estação de comboio.
Nem um sorriso apressado.
Apressados, só os corpos em busca do refúgio da chegada.
Como é possível viver assim?

Já na carruagem, pessoas de olhos fechados a fingir que dormem, e outras, de olhos abertos a fingir que vêem.
Faz de conta, esta viagem.

Toca a campainha das portas, anunciando a chegada a mais um destino.
As pessoas saem, de cabeça baixa, acotovelando-se, não vá a do lado dar o passo maior.
Entra ar puro enquanto as portas se mantêm abertas.
Perco a esperança.
Dos novos companheiros de viagem que entraram, nem um sinal de alegria.
Todos trazem no rosto, o sorriso ao contrário.
Paisagem esta, bem mais agreste e deprimente, do que aquela que se vê nas fotografias deste episódio 4º.
Será que as pessoas ficaram em casa e, mandaram as suas tristes sombras trabalhar?

Lá vai o comboio, massajando o corpo, adormecendo o pensamento, seguro no seu carril.

Era assim o macho do Ti Manel Bugalhão, seguindo o carril, quando lavrava.
Cabeça baixa com o olhos a acompanhar.
Focinho babado, beiças arregaladas, e os dentes a luzir.
Parecia até sorrir.
Se calhar, feliz por não ser burro.
Algumas das minhas companhias, da carruagem onde vou, teriam inveja do sorriso do macho.

Lá ia ele, rego após rego.
-Anda macho d`um cabrão.
-“Pa riba, pa riba macho”, gritava.
Ia abrindo feridas na lavrada, e ao mesmo tempo, estendendo uma toalha de terra fina, escura e fresca, que servia de festim, para os pássaros não convidados.
-Anda corno, dizia prolongando os ós.
-“Ó baixo, ó baixo”, instruía o Ti Manel, sempre que o bicho se distraía, e o rego entortava.

O céu estava parado.
O vento também.
O sol, ardia no lombo do macho e nas goelas do homem, vingando-se dos momentos em que as nuvens o não deixavam passar.
Um convite.

Pararam debaixo de uma oliveira.
O macho para retemperar as suas forças, o Ti Manel, para matar o vicio e preparar um cigarrito.
Tabaco numa mão, mortalha na outra, corpo imóvel, e muito cuidado para juntar os dois ingredientes, não fosse a mão falhar.
Enrolava, apertava, e por fim, sobrava sempre um pouco de saliva que o sol não secara, para selar o “paivante”.

Isto é que é vida.
O sol, o campo, a paz, e o descanso merecido
Mas o melhor de tudo, era sentir o fumo do cigarro a deslizar pela garganta, até lhe alugar os pulmões.

Pára o comboio.
É a minha estação.
Levanto-me com cuidado (tive a sorte de fazer a viagem sentado), empurra daqui, empurra dali, e lá vou eu, cabeça levantada, olhar em frente, arriscando-me a levar uma pisadela por mostrar tal altivez; mas é o risco que corro por não estar triste e de cabeça baixa, apesar de ter motivos para isso...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (4º Episódio)

NASCER, VIVER E MORRER EM MARVÃO...


Paisagem agreste da serra de Marvão



João Serra havia trabalhado o dia inteiro nas terras do Cabeço do Seixo, onde desde as seis da manhã, tinha semeado o seu meio-alqueire de centeio em terra arrendada, lavrada pela sua célebre junta de machos velhos e cheios de “pulmêra”, mas que este sempre gabara, anos mais tarde, ao seu cunhado Manuel, como sendo a melhor parelha do concelho de Marvão.

Puxava agora uns toscos acordos musicais, no seu harmónio de duas escalas, no bailarico do ti João do Barreirão na Abegôa, cerca de quinze quilómetro a sul do local da sementeira, na aba da serra de Marvão.
No salão de sobro, o som do filarmónico instrumento do Serra, saía como uma sonância arrastada e chorosa, que parecia exprimir um queixume, que dizia "…vem um homem do cabeço d´seixo… só por castigo, só por castigo…", enquanto meia-dúzia de pares de rapazes e raparigas, lá iam arrastando os pés, depois de mais um dia árduo de trabalho e, simultaneamente, aproveitando para exibir dotes a seus pares, para possível acasalamento futuro.

Estávamos então no ano de 1919, e o nosso músico estava deserto que a função desta noite chegasse ao fim. Pois, para além do corpo moído por doze horas de trabalho de lavoura, tinha ainda que palmilhar mais quinze quilómetros até ao sítio dos Carris, do outro lado do monte, onde iria conhecer Luísa, a mais nova das suas irmãs, que já havia quinze dias tinha visto, pela primeira vez, a luz do dia.

Luísa, que seria conhecida anos mais tarde por Luísa Serra, apelido que nunca constaria no seu registo de nascimento, era a sétima descendente viva de José Lourenço e Joaquina Serra.
Antes dela, separados em média por dois anos, já haviam nascido João, Maria, Catarina, Manuel, Eufrazina e Esperança. E, mais alguns nados mortos, que nunca chegaram a ter nome.

De Joaquina, muito pouco se conhece, a não ser que se tratava de mulher simples e trabalhadora, e que morreu subitamente, sozinha, na sua casa nos Carris, após separação de José Lourenço, mais conhecido por José da Quinta, jogador de cartas inveterado. Do qual se diz, que certa noite, após ter perdido todas as suas economias e mais nada tendo para jogar, pôs sobre a mesa de jogo a sua mulher Joaquina, só não a perdendo, porque o seu adversário não aceitou o desafio, perdoando-lhe a dívida.

Luísa viveu os seus primeiros anos de vida na companhia da irmã Esperança, dois anos mais velha. Os restantes irmãos, já haviam saído de casa para ganhar o pão e trabalhavam em casa de patrões. João, o mais velho, já tinha constituído família, e vivia agora do outro lado da serra, perto de Santo António das Areias. E, como sabemos, vai agora a caminho para conhecer sua irmã e visitar sua mãe, que não vê desde o seu ajuntamento com Cesaltina.

Foram poucos os anos que as duas petizas conviveram, pois Esperança haveria de ser entregue a uma família rica de Monforte, para ser criada, quando tinha apenas seis anos de idade.
Desse tempo, recorda Luísa apenas, os seus encontros fortuitos com os vizinhos, que com elas se metiam, perguntando-lhes os nomes. Ao que Esperança, por ser mais velha respondia: “eu xou Pancha, e aquela é Lija…”

Como era normal naqueles anos vinte, não frequentou Luísa qualquer escola, e embora aprendesse toda a universidade da vida, será até ao fim dos seus dias considerada como analfabeta pela estatísticas sociais.
Aos dez anos de idade, já trabalhava em casa de seu irmão Manuel, a troco de uma sopa a cada uma das refeições e um pouco de pão de centeio, com que se alimentavam os pobres dessa época, já que, essas coisas das dietas só seriam faladas muitos anos mais tarde. Durante a sua juventude, trabalhou no campo, nas terras de quase todos os proprietários das redondezas, em trabalhos sazonais, desde os Alvarrões até à Galocha.

Como já foi referido anteriormente, quis o destino, ou qualquer outro acaso, que numa das suas visitas a casa de sua irmã Maria, que após ajuntamento havia ido morar para o Vale de Carvão, conhecesse Manuel, e como costuma acontecer nestas situações, logo ali os dois estranhos se deram d´olho.
Claro que esses tempos, não eram como os dias de hoje, que mal dois jovens se conhecem, logo começam a ufanar-se de andarem
No caso destes dois, o que podemos dizer com propriedade é que foram apresentados. Se assim se pode dizer da acção de malandrice, usada por Maria, quando disse com simplicidade de mulher, “olha mana…este aqui, é o Manel, filho do moleiro ali do Pego Ferreiro…”.
Não precisou Maria de promover mais, qualquer propósito de charme junto dos dois moços, pois sem se saber muito bem porquê, ou talvez, porque cupido escondido atrás de um dos canchos que circundavam a pobre casa de Maria, ao ver os dois estranhos parados frente-a-frente, lhes lançou a sua certeira seta e logo ali, lhes traçou o fado.

Haviam já passado dois meses desde o encontro de Luísa, rapariga trabalhadora por conta de outrem e Manuel, rapaz contrabandista de café e azeite, que ajudava o seu pai na arte do moinho, mas que nunca havia trabalhado para ninguém, postando em prática a divisa de seu pai Xico Bugalhão, que afirmava “que em sua casa nunca nenhum dos seus filhos trabalharia para patrão algum.”

Luísa conseguira nesse dia, convencer sua mãe a irem ao baile das festas da Aramenha. Para tal, vestira o seu mais bonito vestido, que sua irmã Esperança lhe havia trazido na última visita, e que tinha sido de uma das filhas da sua abastada patroa de Monforte.
Sentada no colo de sua mãe, assistia às diversas desgarradas entre rapazes e raparigas, em despiques de sedução tão em uso nessa época, quando, deu pela chegada de rapaz desconhecido, montado no seu macho vermelho.

Terá o vermelho parado por aqui...
Estremeceu o coração de Luísa, ao verificar que afinal o dono do macho vermelho era Manuel, moço que lhe havia apresentado sua irmã. E como moça cantadeira que se orgulhava de ser, logo na sua cabeça se começaram a desenhar as rimas das palavras que prontamente lhe saíram da garganta, e em tom de desfio, as lançou ao vento: "amor nesse teu rosto/ é onde eu me entretenho/ se tu em mim fazes gosto/ eu em ti melhor empenho".

Não manifestou Manuel qualquer reacção de resposta, fazendo-se até desapercebido, pois como sabemos não é Manuel rapaz extrovertido, que andasse para aqui a responder a cantigas de raparigas.
Mas a resposta sabemo-la nós e, certamente, que na manhã seguinte fará parte do reportório do filho do moleiro, quando na solidão do seu moinho, trautear a réplica a esta atrevida: "eu queria se feiticeiro/ dessa tua criatura/ também queria afeiçoar/ uma cara como a tua…".

Seis meses depois, montariam estes dois o macho vermelho, já aberto dos peitos, das constantes cavalgadas que o seu dono o obrigou a fazer entre o Pego Ferreiro e os Carris, e passariam a sua noite de núpcias em casa de Julião Pena e Mari´zei, a partir desse momento, cunhados da cantadeira dos Carris.

O que o autor desta crónica nunca conseguiu apurar, é se o nobre animal conseguiu transportar directamente o casal para o Vale Carvão, ou, se de tão “cansado”, se viu obrigado a retemperar energias, num dos vários prados que se lhe depararam no percurso…

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (3º Episódio)

As águas e as margens do rio Sever


A DURA VIDA DE UM HOMEM...



A tarde havia sido longa, e na taberna do Xico Videira já passava das nove da noite, quando Manuel, na súcia com o Pingas, o Zé Algarvio, o Cancelas, o Julião Pena e o ti Mané Batista, haviam já, quase esgotado, as mil-e-uma peripécias da candonga, que contavam vezes sem conta, uns aos outros, como se fosse a primeira vez; tal a inspiração, que punham, ao relembrar cada uma das sortes por si vividas, por essas veredas e canchos dessa zona da raia. E, em simultâneo, esgotavam o vinho, nas diversas rodadas, que cada um já havia mandado vir.

Manuel, há já algum tempo, com um desassossego fora do normal, que dizia aos parceiros, que tinha que ir andando, que aquele copo seria o último, e que a sua enxerga de palha, há muito que o esperava no moinho do Fraguil.
Esta agitação deixava os amigos desconfiados sobre tal urgência. Pois todos sabiam, que o parceiro, raramente tinha pressa de ir para casa. Tanto mais agora, sem mulher que o esperasse…questionando-o até, com uma certa apreensão e malandrice, se não houvera dormido a sua indispensável sesta.
Mas Manuel, já há muito tempo que mal os ouvia. Desde que aquele piãozinho zumbidor começara a girar na sua cabeça…e, só para se livrar de mais piropos por parte dos companheiros, ali permanecia. Embora disfarçando com dificuldade, a sua sobeja ansiedade, acabando por se despedir, agarrando na jaleca, que nunca dispensava nem de inverno nem de verão, e um pouco acabrunhado, lá seguiu a caminho do moinho.

É sabido que desde que baco revelou ao homem essa maravilhosa descoberta, que é a fórmula de transformar uvas em vinho, através do processo de fermentação das ditas, que este, tem sido o responsável por diversos milagres, como são os casos, sobejamente descritos, de dar vista aos cegos e fala aos mudos. É claro, que quem diz fala diz pensamentos, já que por norma estes precedem aquela, através de complexos e elaborados processos bioquímicos.

Não pode o autor destas palavras saber se foi por efeito desse mesmo vinho, que Manuel vai agora cabisbaixo, absorto nessa exclusiva capacidade humana, que é o reflectir sobre a vida, se a tanto lhe assiste os seus moderados conhecimentos, de homem que apenas fez a terceira classe, mas a quem a escola da vida, tem dado algumas lições de filosofia.

O caso com os “carabineros”, lembrado pelo ti Mané Batista, afluía-lhe agora ao ficar sozinho, com clareza à sua mente. Caso esse, sucedido quase há vinte anos, quando Manuel já havia conhecido Luísa, mas que lhe haveria de marcar o resto da vida, ao ter como desfecho a sua prisão em Cáceres, pouco tempo depois de ter acabado a guerra civil de Espanha.

…«Manuel, teria então cerca de vinte anos e o Batista, já homem maduro, andaria perto dos trinta. Haviam pegado como de costume, ao início da noite, cada um na sua carga de trinta quilos de café, que iriam entregar perto de Valência de Alcântara.
Manuel, apesar de ainda gaiatão, tinha já alguma experiência nestas coisas do contrabando, pois desde os doze anos de idade, que seu pai, Xico Bugalhão, de quem ainda não havíamos falado, mas que não está esquecido, o acostumara a acompanhar, para aprendizagem, o numeroso rancho de homens que chegou a ter a trabalhar para si nestes negócios do contrabando. Mas nada que se igualasse com a de Mané Batista, que para além da experiência, acumulava com alguma fama e dotes de homem teso, sobretudo, quando se tratava de enfrentar os guardas-fiscais portugueses, ou os “carabineros” castelhanos, que deixava qualquer parceiro seguro e tranquilo.

Mas naquela noite de início de Fevereiro de 1940, as coisas tinham começado mal, pois desde manhã que caía uma chuva contínua e forte, a qual já fazia extravasar o Sever e o seu afluente do Pego da Caleja, o ribeiro dos Tintos. As pontes e pontões, já nessa época eram escassas e sempre guardadas pela guarda fiscal, de modo que a travessia destas linhas de água se fazia através de passadeiras escondidas, a que os eruditos chamam poldras, mas que, naquela noite se encontravam engolidas pela cheia.

Combinaram, estrategicamente os dois contrabandistas, que na travessia do Sever, seria Manuel, por ser mais novo, a atravessar a nado, sem carga para a outra margem; chegado lá, lançaria uma corda para a margem de cá, depois de a amarrar bem a uma árvore, regressando para vir buscar o seu carrego, e passariam ambos e as cargas, com a ajuda da corda; quando chegassem ao ribeiro dos Tintos, fariam o inverso, sendo a primeira travessia para amarrar a corda na outra margem, feita belo Batista.

A empresa acabou por ser levada a bom porto, com relativa facilidade, e salvo os corpos encharcados até aos ossos e algum tempo perdido, os dois homens e respectivas cargas, haviam já atravessado a fronteira, e passavam a norte da Fontanhêra, quando o relógio de Manuel marcava a meia-noite.
A noite, como por milagre, havia clareado, a chuva tinha deixado de castigar os corpos dos dois homens, que seguiam em silêncio, um detrás do outro, separados por cerca de cinquenta metros. Pois se os “carabineros” lhes saíssem, sempre um deles teria meia centena de metros de dianteira na fuga.

A lua-cheia, de um luar de Janeiro ainda não findado, luzia agora com todo o seu esplendor, sobre estes dois corpos húmidos, que se deslocam lentamente, libertando uma evaporação contínua, que se não soubéssemos tratar-se de duas criaturas humanas, que acarretam às costas o seu sustento para os próximos dias, possivelmente, julgaríamos que se tratava de duas almas penadas, que descendo do céu, procuravam o melhor sítio junto ao solo, para aí pernoitarem no que restava dessa noite.

Manuel rapaz introvertido caminhava atrás, e ia afinando, mentalmente, alguns versos dos seus dotes poéticos, que na manhã seguinte, lhe serviriam de cantilena, enquanto se entretivesse a picar a pedra do moinho de seu pai, no Pego Ferreiro: “Eu q`ria ser fetecêro/dessa tua criatura/também q´ria ser herdêro/duma cara com`a tua”; “A mulher p`ra ser bonita/e p`ra ser do agrado/há-de ter um bom bigode/e o nariz arrebitado”. E, quem sabe, talvez um dia lhe servissem como ensaio para alguma desgarrada, com Luísa, rapariga cantadeira.

Tão absorvido vai nos seus ensaios, que nem se deu conta de dois vultos, que saídos não se sabem de onde, lhe deitaram já a mão aos trinta quilos de café, e lhe zunem ao ouvido: “conho hombre, onde piensas que vas…”
Manuel, após o abalo…mas com a agilidade da sua juventude, conseguiu libertar-se das presilhas que o apresavam à carga e inicia a sua fuga na direcção do Batista, que seguia na frente; e ao chegar perto dele bradou: “ti manel, fuja que temos aqui os “carabineros”…

No instante seguinte, o som de um tiro de fuzil soou estridente no ar, e o ricochete da bala zuniu, batendo nas pedras, ali bem próximo deles. No entanto, os dois fugitivos já se haviam refugiado atrás de uns calhaus, protegidos por uma plantação de “figueiras-chumbas”, sem que o Mané Batista largasse os seus trinta quilos de café, que lhes iriam servir de negociação e, simultaneamente, para engodo aos espanhóis.

Num primeiro momento, reinou um silêncio absoluto, até que um dos de carabina, resolveu advertir, que se “los protuguêses de mierda” senão entregassem, lhes enfiaria “una bala en nel culo”. Ao que o Batista ripostou com, “espanhol dum cabron, daqui só abala, quem tiver os sessenta quilos de café…”, enquanto, furtivamente, apanhava algumas pedras que ia metendo nos bolsos.

A iniciativa do assalto pertenceu aos espanhóis, talvez, quem sabe, ainda inspirados em Aljubarrota e foram-se aproximando. Ou talvez, pela a afoiteza que lhes davam as carabinas. Pois lá iam disparando, tiro a tiro, sem no entanto causarem qualquer dano aos moços da “ala dos namorados”.

Manuel rapaz novo, começava a ficar receoso, e ia dizendo “ ti Manel…levamos esta carguita, que já não perdemos tudo e vamos cavando, que os gajos já ficam contentes com a outra…olhe que ainda nos findam aqui com a vida”. Mas o Batista, não estava pelos acertos, e reafirmava que dali só abalava com tudo ou sem nada, e que nunca espanhol nenhum ficaria a troçar dele.

Manuel via as coisas a ficarem feias, mas também não queria dar parte de fraco, e ficar-lhe na consciência o abandono de um amigo numa hora delicada, e ainda por cima o teso do Mané Batista!... Que decidiu ficar, acontecesse o que acontecesse…
E o que aconteceu foi o que tinha que acontecer. Mal um dos “carabineros” se aproximou um pouco mais, e ao desviar-se de uma das folhas cheia de picos, que protegia os portugueses, o Batista, com a pontaria infalível de um david, sacudiu-lhe uma “calhoada” com a pedra mais afiada que havia escolhido, apanhando o pobre golias castelhano, mesmo no centro da testa, derrubando-o de cangalhas…e do qual, apenas se ouviu um profundo suspiro:”ah cabron, que me mataste…”.»

A lembrança deste episódio tinha trazido Manuel, até perto da ribeira, ainda a tempo de recordar as consequências daquela peleja luso-espanhola, ao permitirem que o outro dos “carabineros” fugisse, deixando contudo a carga que o Batista havia prometido recuperar, e que já de madrugada haveria de ser entregue, aos de Valência, com o recebimento da respectiva soldada. Só que o fugitivo, havia reconhecido o filho do moleiro Paco Bugalhon, e a retaliação não haveria de tardar…

Quanto ao golias, haveria de acordar cinco minutos depois daquela pedrada do david português, a que todos conheciam pelo ti Mané Batista, e carregar o resto da vida um valente estigma no centro da fronte.

Manuel parara agora em frente das passadeiras do Balcão, olhando fixamente para a outra margem, e o pião zumbidor, não parava de girar na sua cabeça…
(Manuel se fosse vivo, completaria hoje 88 anos de idade)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A ARTE DA CRIAÇÃO



A vida que não passamos em revista, sem reflexão, não vale a pena viver…
(Sócrates).


Nascer é coisa complicada.
Tomemos por exemplo, o nascimento deste espaço de reflexão pessoal ou Blogue, a quem o padrinho, antes do seu nascimento, já havia baptizado com o nome de “retórica”, e de apelido “bugalhónica”, devido ao nome de seu fundador, Bugalhão. Apelido estranho este, a que mais tarde voltaremos, quer pela sua singularidade, quer pela marca com que classifica as pessoas que o transportam.

Mas dizíamos nós que nascer é coisa complicada, ainda a concepção se não deu, e já o rol de preocupações que atormentam o criador parecem não ter fim; que às vezes, dá vontade de um homem nada fazer, para se livrar de problemas. Isto do ponto de vista de quem tem a função ou responsabilidade de dar início ao processo criativo, trate-se ele de lançar à terra uma semente ou rebento de planta, se árvore quiser ver nascer ou plantar; pegar em caneta e papel, para nos referirmos ao método tradicional, ou recorrer às novas tecnologias de meios informáticos, tão na moda nos tempos que correm, se livro ou simples ensaio, como é o caso destas pobres crónicas, quisermos escrever; seja ela, e talvez a mais simples, ou mais complexa, dependendo sempre do ponto de vista de cada um, que é a arte de fazer nascer uma criança. E isto, para nos referirmos apenas, às três funções que dizem competir a um homem, ou mulher, acrescentamos nós, durante a sua passagem por esta vida, que outra, ninguém sabe se terá.

Não iremos deter-nos muito tempo, nem maçar muito o leitor, por enquanto, com esta coisa de ser capital para um homem, o plantar de uma árvore durante a sua vida. E vejam logo, como esta simples afirmação de um autor desprevenido, o coro de protestos que estaremos a levantar por parte dessa classe emergente que são os ecologista ou defensores da natureza. Embora o que o seu criador esteja apenas a afirmar, é que não será agora, talvez mais tarde, não se trata de não ser importante.
Aliás, durante a sua curta infância, o autor deste Blogue, começou por aí, plantando algumas… se é que, se poderia assim chamar, os pequenos arbustos que foi enterrando junto à casa onde cresceu na Abegôa, e que hoje, quando por lá passa, as vê transfiguradas naquilo a que poderemos alcunhar de Árvores.
Mas, sempre acabamos por afirmar, que sobre esta temática da criação vegetal, talvez mais importante do que andarmos por aí, às vezes feitos tolos, em acções infecundas de plantações manhosas, mais valia que preservássemos as que temos, não as destruindo. Porque até hoje, a natureza, nunca careceu da mão humana para fazer reproduzir e nascer as espécies vegetais.

Centremo-nos por agora no essencial desta crónica, cuja função é de garatujar, relacione-se ela com um livro, simples ensaio, ou “posts bloguistas”, salvaguardando as devidas distâncias a que hierarquicamente têm direito.
Concordamos no entanto, que têm muitas coisas em comum, de que é exemplo, a partilha do espaço público. Isto é, concebe um homem uma destas coisas, e rapidamente, ela passa a ser alvo da apreciação por parte dos outros, ou mesmo de sua apropriação por parte de alguns, sobretudo, quando comportam alguma sabedoria ou conhecimento científico.
E não se pense que esta prática é novidade, ou seja, desde o aparecimento das tais novas tecnologias, que põem ao dispor de todos, aquilo que devia ser apenas para alguns. Pois, desde que o mundo é mundo, que há sempre aqueles que se aproveitam das ideias ou conhecimentos alheios, e diga-se, em abono da verdade, que ainda bem, senão às vezes a ninguém aproveitariam.

Não pode até ao momento, o autor deste espaço queixar-se dessa partilha e da falta de críticas positivas e incentivadoras. Pois que, excluindo, a crítica acutilante de Luís, que também leva nas veias um pouco da seiva desta “retórica”, e por isso, tudo está fazendo para que os rabiscos aqui postados lhe não embacem o apelido.
No entanto, não faltam por aí já vozes, embora em surdina, que dizem que parece mal que tal se faça publicamente, apesar de ser evidente, que tal gerador merece algumas reprimendas. Ora será bom aqui afirmar, que este contador de histórias, nada se importa com as críticas que lhe façam, quando justas e construtivas, como têm sido as de filho de Francisco, neto de Manuel, e que na prática vêm servindo e continuarão a servir, a finalidade deste espaço, que convém reafirmar, é a de aprendizagem. Só quem cuida saber muito, pensa já nada ter para aprender e até Sócrates, não o tal, mas o outro, afirmou que “só sei que nada sei…” e era filosofo, ao contrário do tal, que parece saber de mais!
No entanto não nos esqueçamos, que ainda agora estamos no princípio…e que, como diz o outro, no princípio é tudo Bonito. E este já afirmou, para além de todos os elogios aqui deixados, que o criador deste espaço é uma personalidade polémica e pouco simpática; e assim sendo, não será bonito desiludir os amigos.

Mas por agora, manda a boa educação, agradecer as palavras incentivadoras dos diversos leitores que por aqui têm passado, mesmo as daquele, que classificando-se como leitor passivo, Mário, de seu nome, filho de Conceição e neto de Luísa, logo primo de Luís, e que aqui fez quase um poema, a quem nos atrevemos a fazer um desafio: se te correm nas artérias seiva “bugalhónica”, tens que ser “activo”, e vir aqui mais vezes expor as tuas fantasias.
Para remate ficaram, Jorge e Maria; não que tenham algo em comum, a não ser uns pequenos conselhos, que Jorge tem dado a Maria. Jorge, porque ao desejar que a “escrita seja melhor do que antigas tácticas futebolísticas”, está a colocar a bitola muito alta para este humilde criador. Porque nunca esta simples escrita, por muito que evolua, poderá contar com argumentos de peso, como os exibidos por Jorge, enquanto executor dessas tácticas de outros tempos. Maria, porque a empreitada que a espera é árdua, e dificilmente, poderá contribuir para confirmar, ou desmentir Jorge, ao contribuir para que a presente criação, supere a experimentada por Jorge no passado…

Quanto a germinar uma criança, ou se filho se tratar… isso serão coisas para tratar bem lá mais para diante, pois ainda a procissão vai no adro, e Manuel subindo a encosta das giestas floridas…