por Ricardo Lima
“Ao contrário da maioria das pessoas que me
têm abordado para debater a detenção e do que se vai ouvindo no café e no
autocarro, sou dos pouco que conheço que não considera este caso – José
Sócrates – o mais importante da justiça portuguesa. Pelo contrário, não o
considero o mais importante do ano. O título está reservado para o dia em que
acordei com a notícia que aquele a quem apelidavam de “o Dono disto Tudo” havia
sido detido. Nesse dia tomei por certo que todo o dominó de favores e apoios
estabelecidos em torno do Grupo Espírito Santo e da pessoa de Ricardo Salgado
havia de dar de si, mais tarde ou mais cedo.
A crise da PT foi o primeiro grande abalo do
regime. Se o BES era o grande símbolo corporativista herdado do regime
anterior, a PT era um dos pilares do novo, ninho dos abutres de 76, sempre de
mão dada com o Estado, mesmo após a privatização. Só neste processo de
deterioração de um regime cuja podridão já vinha sendo profetizada pode
explicar o que aconteceu este fim-de-semana.
Mais que uma credibilização do sistema
judicial – o que não o isenta do mérito – deve ser entendida como uma
descredibilização de uma oligarquia enfraquecida. Tem que ser entendida numa
linha de interesses económicos que floresceram no Estado Novo. Foram quase que
varridos do país no putsch de 74 para retornarem e varrerem eles mesmos a III
República, uns anos mais tarde, tornando-se, mais que senhores do país, seus
senhorios. Amigo pessoal de reis e primeiros-ministros, Salgado esteve sempre
envolvido nos momentos chave da política portuguesa. Convence Cavaco a
candidatar-se à presidência e tem um papel activo na demissão de Santana Lopes.
Acolhe Barroso no seio do BES, numa posição que o ajuda a manter-se até assumir
a liderança do PSD. Está metido nos submarinos, nas obras públicas de Sócrates,
na PT, na privatização da EDP, na Fomentinvest onde Passos Coelho foi director.
É do seu grupo que sai Mário Lino, ministro da economia de Sócrates e é com o
ex-PM que tem a relação mais próxima e cúmplice.
O Estado não é pessoa de bem. Em Portugal, o
Estado não só não é de bem, como é controlado pelos meninos de bem das antigas
famílias, como seus senhorios e pelos betinhos das jotas – muitos deles
enteados do novo-riquismo – como seus senhores. Este fenómeno transversal a
diversas áreas das ciências humanas devia ser estudado nas grandes
universidades francesas, palcos dos mais insólitos estudos sobre o Homem e os
seus devaneios. Só na academia se encontrarão cérebros capazes de explicar a ascensão
deste “Engenheiro” – que nem para isso servia – a São Bento. E se só um
sociólogo pode explicar a ascensão de Sócrates, só um criminólogo pode explicar
o seu governo e a sua travessia do deserto – que mais foi um forrobodó de luxo
financiado, directa ou indirectamente, pelo erário público, à revelia da lei e
da ética. O homem que tentou limpar a comunicação social, afastando Crespo,
José Manuel Fernandes, Moura Guedes, que comprou uma guerra com o Sol e se
lançou em esforços para comprar a TVI. O “pai” da desgraça do Euro 2004.
O homem do betão e das PPP´s, padrinho dos
empreiteiros e das concessionárias que ainda hoje nos assaltam. Mentor do
desgoverno financeiro que nos entregou aos credores, escudeiro do Estado forte,
grande, ineficiente, metediço. Protagonista de um pós-bolivarianismo de tons
ibéricos.
Sócrates foi o último terramoto desde cataclismo que foi o regime nascido da Abrilada. Passos Coelho será, talvez, uma pequena réplica de mau gosto.
Sócrates foi o último terramoto desde cataclismo que foi o regime nascido da Abrilada. Passos Coelho será, talvez, uma pequena réplica de mau gosto.
Mais que o julgamento, nos tribunais, de um
dos homens que nos desgraçou a todos, este é o julgamento, público, do bando de
abutres que nos vem pilhando desde sempre. Daqueles que nos ministérios e nas
empresas defecaram na pouca dignidade que resta à nação, roubando – qualquer
outra palavra é eufemismo – sem eira nem beira, perpetuando-se a si e aos seus
no poder – político e económico. Este é o julgamento de uma terceira via, um
capitalismo de socialistas caviar, um socialismo de capitais desviados. Este é
o julgamento de um modelo de governação assente no compadrio, no suborno, na
coerção, na corrupção aos mais altos níveis da sociedade.
Mas acima de tudo, este é o julgamento de um
país e de um povo que gerou políticos à sua imagem.
Das boleias e quotas pagas nas concelhias por uma conta mistério em vésperas de eleições. Dos clubes de futebol da terrinha e dos terrenos que vão andando de mão em mão. Este é o julgamento do chico-espertismo que tenta sempre passar à frente, no trânsito, na fila da repartição das finanças. Do menino que liga aos amigos do pai por causa daquela vaga na universidade, do pai que liga ao colega do secundário, que agora trabalha na Junta, para dar uma ajudinha ao colega que ficou desempregado. É o julgamento das garrafinhas de whiskey e dos bacalhaus pela consoada, para pagar favores do ano inteiro. Dos exames de condução feitos na marisqueira, dos vistos apressados no consulado, daquela licença para obras agilizada com uma sms ao senhor vereador.
Das boleias e quotas pagas nas concelhias por uma conta mistério em vésperas de eleições. Dos clubes de futebol da terrinha e dos terrenos que vão andando de mão em mão. Este é o julgamento do chico-espertismo que tenta sempre passar à frente, no trânsito, na fila da repartição das finanças. Do menino que liga aos amigos do pai por causa daquela vaga na universidade, do pai que liga ao colega do secundário, que agora trabalha na Junta, para dar uma ajudinha ao colega que ficou desempregado. É o julgamento das garrafinhas de whiskey e dos bacalhaus pela consoada, para pagar favores do ano inteiro. Dos exames de condução feitos na marisqueira, dos vistos apressados no consulado, daquela licença para obras agilizada com uma sms ao senhor vereador.
Mais que o julgamento dos canalhas que nos
governam, é o julgamento dos canalhas que se governam. E em Portugal todos se
tentam governar às custas uns dos outros. O que está aqui em jogo e a reflexão
que se pretende não gira em torno do debate esquerda/direita,
liberalismo/conservadorismo ou este governo é pior que o outro e vice-versa.
Isso são discussões pertinentes, importantes, mas devem ficar para outro dia. O
que está aqui em jogo é a ausência de vergonha que grassa em Portugal e nos
portugueses.
O Zé – não o Sócrates ele mesmo – que é hoje
deputado sem conseguir conjugar um verbo sem calinadas e entender-se com o
sujeito e o predicado podia ser você, caro leitor. Com um pouco mais de esforço
e afinco e se o André que brincava consigo e com os seus primos na casa de
férias não tivesse perdido aquelas eleições, na federação académica ou na distrital.
Se o Carlos, seu cunhado, não tivesse perdido aquela vaga na empresa, que até
costumava fazer negócio com aquele ex-secretário de estado que agora está a
“trabalhar” no ramo. O que o meu caro amigo teve não foi nem a ética nem a
dignidade de cuja falta se acusam os nossos políticos de ter, como se abundasse
na sociedade.
O que o meu amigo teve foi falta de sorte.
Mas não se queixe. Ainda há uns meses conseguiu aldrabar umas facturas para
“meter no IRS”. O empregado da Junta, que pôs a tijoleira lá em casa, deixa-o
sempre estacionar lá o carro. O Mendes da esquadra deu um toquezinho
relativamente àquela multa, mas também ninguém o mandou estacionar num lugar
para inválidos. O meu amigo dê é graças a Deus por ter passado à frente nas
urgências quando lhe deu aquela coisa no ano passado ou quiçá não estivesse
aqui a terminar de ler este artigo. E não tenha vergonha. Todos o fazem. Se não
fosse você, seria outro a aproveitar.
E no que toca a benesses, antes nós que os
outros!”
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