por Ricardo Araújo
Pereira
"Temos de falar. Como sabes, o meu amor por ti tem resistido a tudo. Tu és pobre, sujo em vários sítios e estúpido muitas vezes. Mas há em ti uma certa ingenuidade que faz com que até os teus defeitos - e são tantos - me seduzam. Na maior parte das vezes não és mau, és só malandro. E tens três qualidades que compensam tudo o resto: a comida, a língua e o clima.
Era precisamente
sobre isto que te queria falar. Andas a desleixar-te.
A comida já foi melhor. Bem sei que a culpa não é só tua. A União Europeia proíbe umas coisas, os nutricionistas desaconselham outras. Mas já não se encontram jaquinzinhos, os restaurantes receiam fazer cabidela e a medicina parece ter arranjado um método infalível para determinar o que é prejudicial à saúde: se sabe bem, faz mal.
A comida já foi melhor. Bem sei que a culpa não é só tua. A União Europeia proíbe umas coisas, os nutricionistas desaconselham outras. Mas já não se encontram jaquinzinhos, os restaurantes receiam fazer cabidela e a medicina parece ter arranjado um método infalível para determinar o que é prejudicial à saúde: se sabe bem, faz mal.
A língua também
já não é o que era. Não me entendas mal: continua a ser a tua maior virtude.
Não sei como é possível uma pessoa exprimir-se numa dessas línguas bárbaras que não distinguem o ser do estar. Embora os
franceses e os ingleses, aparentemente, não o saibam, ser bêbado é muito
diferente de estar bêbado. Mas, quando eu era pequeno, “setores” era o nome que
se dava aos professores. Hoje, setores é a versão actualizada da palavra
sectores. Na escola, os “setores” explicam o que os setores são. No meu tempo,
o sector primário era a área de actividade que compreendia a agricultura e
outras formas de produção de matérias-primas, e um “setor” primário era um
professor do ensino básico. Agora, é tudo a mesma coisa, assim como
"être" e "to be" significam tanto ser como estar.
Outra coisa:
isto do clima não pode continuar. Este verão foi muito fraco. Houve pouco sol e
a água estava fria. Não se admite. A gente tolera a corrupção, a injustiça, a
inveja, o subdesenvolvimento e tudo o mais que tu conseguires gerar. Mas tem de
estar sol. Se é para não haver verão, nem subtilezas linguísticas, nem papas de
sarrabulho, mais vale irmos para a Finlândia, onde as coisas funcionam (e a
moral sexual das moças nórdicas é muito mais relaxada).
Tens de escolher: ou há regular
funcionamento das instituições, ou há céu pouco nublado ou limpo. Vê lá isso,
por favor.
Um grande beijo.
Ricardo."
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